NOTA TÉCNICA ABED – Seria necessário alterar a Reforma Trabalhista?

ABED
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Desde logo, ressaltamos que, de uma forma ou de outra, o capitalismo se reinventa a cada crise criada por ele mesmo. Em todas elas, contudo, há um ponto comum: a cada nova reinvenção o trabalho perde um pouco mais. É esse trabalho cada vez mais desprovido de proteção e organização, com crescente desmantelamento dos aparatos normativos, em particular aqueles que estabelecem garantias e direitos sociais, que o torna mais informal, funcionando como um apêndice de uma máquina que domina o mundo, que vem sendo atingido por sucessivas crises do capitalismo.

Contudo, é importante destacar que desde há muito tempo o mundo do trabalho vem passando por um processo disruptivo, que irrompe na base do sistema produtivo. Esse processo, mais recentemente, causa uma profunda e radical transformação, que tem sua origem com a introdução da inteligência artificial nos processos de produção, aliado às novas tecnologias nas áreas de energia, transporte e comunicação, expandindo-se para todos os setores econômicos, irrompendo no sistema produtivo a partir de um ambiente globalizado que é comandado hegemonicamente pelos interesses financeiros. Assim, postos de trabalho são eliminados, ocupações desmobilizadas e profissões destruídas.

É verdade que a situação acima descrita não se constitui em fenômeno novo, especialmente no Brasil, que nunca chegou a estruturar o mercado de trabalho. A novidade é que a “viração”, processo de adaptação para sobreviver, não é mais um fenômeno restrito aos setores que estão na base da pirâmide social, pois atinge também segmentos médios da sociedade brasileira. Esse processo de adaptação também está relacionado com as tecnologias disponíveis, o padrão de consumo, a desigualdade social e com o modo de vida prevalecente de mercantilizar todas as esferas da vida, de tal forma  que milhares de profissionais tiveram que inventar algum trabalho para sobreviver, porque não conseguiram se reinserir no mercado de trabalho.

De todo modo, neste país de capitalismo tardio, não sem muita tensão e dificuldades reais, foi sendo constituído um sistema de aparato social, a partir de 1930, em meio ao processo de industrialização, convalidado em 1943 pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Assim, com idas e vindas, esse sistema foi recepcionado pela Constituição de 1988 que, alicerçada nos princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho, amálgamas das ordens social e econômica, elevou os direitos dos trabalhadores à condição de direitos sociais fundamentais, buscando constituir o Estado Social.

Contudo, após terem experimentado uma elevação normativa significativa, ao serem incluídos na Constituição Federal de 1988, os direitos sociais fundamentais, foram sofrendo lento e progressivo desmonte, que se inicia no governo de F. H. Cardoso, com a criação do “banco de horas”, em substituição ao pagamento de horas extraordinárias; a possibilidade de jornadas alternativas de trabalho, dentre outras. Essa intenção de desmontar o antigo aparato social se tornou mais evidente com o envio do Projeto de Lei nº 6787/2016, que tinha por objetivo alterar regras da Consolidação das Leis do Trabalho, trazendo em sua exposição de motivos justificativas como: aprimorar as relações do trabalho, valorizar a negociação coletiva, combater a informalidade da mão de obra, além de prometer a geração de novos empregos que, inicialmente, eram estimados em 2 milhões, passaram para 3 milhões e, às vésperas da votação pelo Congresso Nacional, chegaram ao fantástico (no sentido de irreal) número de 6 milhões de novos empregos.

Portanto, foi com a aprovação da chamada “reforma trabalhista”, durante o governo Temer (Lei 13.467, de 13.07.2017, com vigência a partir de 11 de novembro de 2017), que o referido desmonte se concretizou. Com ela, a noção de trabalho e sua desvinculação social tornou-se o foco da legislação que flexibilizou as leis trabalhistas em nosso país. Tal perspectiva não se restringiu apenas às interações do mercado e das relações econômicas, mas também, à organização social. Tal tensão consiste precisamente porque as antigas estruturas sociais já não respondem mais.

Dentre os efeitos negativos da referida “reforma”, o aumento de postos de trabalho formal, sua principal argumentação, não ocorreu; ao contrário, abriu espaço para essas aberrações trabalhistas como os informais, “uberizados”, precarizados, autônomos exclusivos, “empresários de si próprios” (ou falsos empreendedores), “pejotizados”, que em regra são empregados disfarçados e, em junho de 2022, já somavam cerca de 32 milhões de trabalhadores.

Assim, quando a reforma Trabalhista completou 4 anos de vigência, foi possível identificar que o seu objetivo maior era a supressão ou a imposição de restrições aos direitos da classe trabalhadora, tais como: a) retirou o direito de ser computado, na jornada de trabalho, o tempo dispendido até o trabalho em locais de difícil acesso (CLT, 58, §2º); b) retirou o direito à remuneração em dobro dos feriados trabalhados na escala de 12 x 36 (CLT, 59-A, parágrafo único); impôs limite ao direito do trabalhador em receber indenização por danos extrapatrimoniais (CLT, 223-G, 1º); retirou o caráter salarial dos valores pagos a título de prêmios, diárias ou abonos (CLT, 457, 2º); instituiu obrigação do trabalhador, ainda que beneficiário da justiça gratuita, no pagamento de honorários periciais ou advocatícios se sucumbente no pedido (CLT, 790-B, 791-A, §4º), assim como possibilidade de condenação no pagamento de custas mesmo sendo hipossuficiente (CLT, 844, §2º).

Aqui destacamos que, segundo dados do Tribunal Superior do Trabalho, no ano de 2016, portanto antes da reforma, foram protocoladas cerca de 2,7 milhões de ações trabalhistas nas Varas do Trabalho do país. Em 2021, esse número reduziu drasticamente, contabilizando 1,54 milhões de ações, equivalente a uma queda de 42,96%. Embora entidades empresariais comemorem essa redução, uma outra leitura pode ser feita: a que indica que havia um enorme receio da parte reclamante em ser condenada a pagar algo, mesmo sem ter condições de manter seu próprio sustento – a  ADI 5.766, julgada em 20 de outubro de 2021, declarou inconstitucional as regras incluídas na CLT, nos artigos 790-B, caput e seu §4º, e 791-A, §4º, que impunham a obrigação no pagamento de honorários de sucumbência mesmo ao trabalhador beneficiário da justiça gratuita.

No entanto, olhando para o outro lado da mesa, a reforma trabalhista serviu para favorecer as empresas em vários pontos, tais como: a) possibilita a implantação de banco de horas ou de jornada com 12 horas de trabalho por 36 de descanso, mesmo por acordo individual, ou seja, sem qualquer interferência sindical (CLT, 59, §5º; 59-A); b) permite o fracionamento das férias em até 3 períodos com a concordância do empregado (CLT, 134, 1º); c) alarga a possibilidade de contratação do trabalhador autônomo não configurando vínculo empregatício, ainda que atuando de forma exclusiva e contínua (CLT, 442-B); d) institui o contrato de trabalho intermitente de forma manifestamente precária (CLT, 443, 3º; 452-A); e) deixa claro que mesmo para dispensas coletivas não há necessidade de autorização sindical ou celebração de normas coletivas (CLT, 477-A).

A (falsa) intenção de valorizar a negociação coletiva, evidentemente, não se harmoniza com regras que restringem, senão eliminam, as fontes financeiras de sustentação das entidades sindicais, que se enfraquecem.

Também não se verificou nada a título de aprimoramento. Segundo a PNAD Contínua, divulgada pelo IBGE, em maio de 2020 a média salarial do trabalhador da iniciativa privada era de R$ 2.789,00. Ao final do primeiro trimestre de 2022, essa renda havia recuado para R$ 2.548,00, equivalente à uma queda de 8,7%. Nesse cenário de perda de renda, o DIEESE calcula que o salário mínimo necessário deveria ser de R$ 5.886,50. Ademais, não entrou na agenda política a discussão sobre redução da jornada, os  programas de participação nos lucros ainda são tímidos e as  negociações coletivas se resumem, no mais das vezes, a tratar da reposição do passivo inflacionário.

É inquestionável que as transformações experimentadas em todo mundo, tais como o avanço tecnológico, as modificações econômicas, sociais ou climáticas, exigem reformas nos processos produtivos e nas relações de trabalho. Mas uma justa reforma deveria vir em benefício de todos, visando melhor distribuição da riqueza, bem-estar social, diminuição da desigualdade, sendo inaceitável que, mais uma vez, o poder econômico, via governo e congresso submissos aos seus interesses, aproveite o vácuo de uma crise, buscando solução mágica que recaia exclusivamente sobre os trabalhadores.

Portanto, a chamada reforma trabalhista merece ser rediscutida. De um lado, para que o verdadeiro empreendedor possa exercer seu direito à livre iniciativa; de outro lado,  para que o trabalhador possa usufruir de todos os direitos sociais garantidos constitucionalmente. Se reformar é preciso, não é preciso precarizar.

Ao final desse breve artigo procuramos demonstrar que, se reforma era necessária, tão mais necessário seria um amplo debate com todos os segmentos e atores partícipes do desenvolvimento nacional, em especial com aqueles cujo produto se resume ao preço de sua força de trabalho.  Com as condições e regras atuais, a tendência é de que conflitos laborais continuem, até porque não resta outra forma de defesa para os trabalhadores. Esperamos que o novo governo, que assume em 1º de janeiro de 2023, tenha a sensibilidade de entender esse quadro, restabelecendo o protagonismo das entidades sindicais nas negociações entre empregadores e empregados.


Grupo de Análise dos Impactos da Crise

Associação Brasileira de Economistas pela Democracia – ABED

Equipe Técnica: Adhemar Mineiro (Coordenação), Antônio Rosevaldo Ferreira da Silva, Eron José Maranho, Jaderson Goulart Junior, José Moraes Neto e Juarez Varallo Pont.

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