‘Plataformas Digitais Não São Meras Empresas, Mas Entidades Políticas de Um Novo Tipo’, avalia pesquisador

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Para pensar as implicações dos novos conflitos e as transformações no contexto em que as plataformas se voltam contra as decisões das autoridades clássicas, Fórum entrevistou o pesquisador e professor em Teoria do Direito, José Antonio Magalhães.

arte: ABED

texto: Antonio Magalhães

O despertador toca. Você acorda. Enquanto procura desligá-lo, percebe por meio do visor algumas informações pela central de notificações que você ativou para que pudesse, de imediato, acessá-las sem muito esforço. É o sistema global de redes de computadores. Mesmo antes de decidir qual conteúdo visualizar, você se lança numa jornada pela internet em mais um dia. Por dentro do fluxo algorítmico, sente que qualquer coisa pode surgir diante da tela. Como quem anda por uma floresta cercada de riscos, você também se depara com entidades de outros mundos. Em meio a nuvem de dados onde se localiza essa nova instância da realidade, as conexões em rede, assim como espíritos, são entidades ambíguas: agências inumanas que, independente da sua permissão, influenciarão os meios do seu acesso, moldando suas preferências, criando identificações e orientando sua posição política na sociedade. Assim, entre os fluxos de informações em rede sobre um mundo tomado pela nuvem, preserva-se neste novo universo o núcleo mágico das entidades algorítmicas com as quais ainda não sabemos lidar diante do constante sentimento de ameaça.

Nas últimas semanas, contudo, o espectro ganhou novamente feição. Em meio aos conflitos entre Twitter/X e o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, o debate acerca da regulamentação das big techs reacende sob novas perspectivas e considerações. Com a decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), pelo engavetamento do Projeto de Lei 2630/20, que estipulava a responsabilização das plataformas sobre os conteúdos veiculados nas redes sociais, somos convocados de novo para uma disputa a respeito das implicações da tecnologia sobre nossas formas de vida: não apenas em relação à autonomia individual comprometida pela corrosão do tempo diante da tela, mas também os próprios marcos que instituem a soberania popular e a ordem política dos Estados-nacionais na modernidade.

Para pensar as implicações desses novos conflitos e as transformações no contexto em que as plataformas se voltam contra as decisões das autoridades clássicas, Fórum entrevistou o pesquisador e professor em Teoria do Direito, José Antonio Magalhães, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Para o pesquisador, que também é professor colaborador do canal Transe, o recente embate entre Elon Musk e Alexandre de Moraes, antes de ser uma questão meramente jurídica, ilustra na superfície do debate público os efeitos do esgotamento dos pressupostos que fundam a experiência política moderna e reposicionam agora as plataformas como ‘entidades políticas de um novo tipo’. 

Na entrevista a seguir, Magalhães explica ainda como os conceitos de “tecnodiversidade” e “cosmopolítica” podem fornecer intuições importantes para desarmarmos os impasses da nova realidade organizativa de uma sociedade em franco processo de mudança. 

Leia na íntegra 

Fórum: Desde o tuíte de Musk pedindo a saída de Moraes do STF, o evento foi marcado por denúncias a respeito da interferência de um ente externo na política nacional brasileira. O que esse movimento tem a ver com a nova ‘soberania de plataformas’ que as big techs atualmente representam e que rompe com o modelo moderno de soberania que se consolida inicialmente no marco dos tratados de Vestfália?

José Antonio Magalhães: Você faz referência a uma thread que eu fiz citando o livro “The stack: On software and sovereignty”, de Benjamin Bratton. Nesse livro, Bratton defende que estaríamos passando do modelo de soberania moderno, chamado “Vestfaliano”, a um novo paradigma de soberania, que ele chama de “soberania das plataformas” ou, brincando com a expressão “nomos da terra”, do jurista alemão Carl Schmitt, de “nomos da nuvem”. No modelo Vestfaliano, a superfície plana da terra era dividida entre Estados soberanos de forma mutuamente excludente, cada um tendo jurisdição e o monopólio do uso da força em relação ao seu respectivo território e população. O novo paradigma da soberania de plataformas, em contraste, adicionaria um eixo vertical a essa divisão horizontal da terra: o chão segue dividido entre os Estados, mas as plataformas exercem seu próprio tipo de soberania de maneira sobreposta tanto em relação aos Estados quanto às demais plataformas. Isso implica que o conflito entre o Twitter e as instituições do Estado brasileiro não deve ser entendido simplesmente em termos de uma relação regulatória entre o poder público de um Estado e uma empresa privada, mas sim de um conflito político entre uma instituição política mais antiga (um Estado) e uma de um novo tipo (uma plataforma). Mais que isso, trata-se da mais recente interação do conflito entre uma lógica jurídico-política moderna cuja crise só vem se agravando, e uma nova lógica jurídico-política que pretende substituí-la ou, no mínimo, tornar-se dominante sobre ela. Ou seja, trata-se de um conflito sobre como os territórios e populações serão governados daqui em diante – através de que tipos de conceitos, técnicas, espacialidades etc.

Fórum: Atualmente há um número crescente de trabalhos nas universidades e institutos de pesquisa a respeito da governança digital que buscam informar e esclarecer o debate acerca da regulamentação das plataformas no país, como o caso do Projeto 2630/20 que, como anunciado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, deverá ser reformulado após os novos elementos evidenciados no conflito entre Musk e o Supremo. Acerca da mudança na forma de soberania que você constata, podemos dizer que os estudos sobre governança digital estão suficientemente sensíveis a essa transformação ou ainda estamos buscando lidar com os problemas do novo paradigma segundo a gramática do modelo Vestfaliano?

JM: Através da própria rede social da qual ele mesmo é o dono, Musk conseguiu pôr a perder anos de discussão em torno da regulação das plataformas no Brasil atrelados ao PL 2630. É evidente que ele faz isso por interesse próprio, não só no sentido imediato de que ele é dono de uma das plataformas a serem (ou não) reguladas, mas por uma série de razões menos evidentes ligadas aos seus interesses econômicos e vínculos políticos. Não obstante, seus puxa-sacos o afirmam como o último bastião da liberdade de expressão no mundo. Alguns são manipuladores interessados, mas as maiorias inocentes compram esse discurso porque continuam a entender uma empresa como algo mais parecido com um indivíduo – e portanto com eles próprios – que com um ente político. O curioso é que os estudos de governança digital, e grande parte das vozes críticas a Musk e defensoras da regulação das plataformas, tendem também a pensar o problema em termos de como o Estado deve ou não regular as plataformas, entendidas ainda como simples empresas. Isso não deixa de ser importante, afinal é preciso mesmo mobilizar os conceitos e ferramentas jurídico-políticas disponíveis para frear a captura acelerada da política pelas plataformas. Ao médio e longo prazo, porém, defendo que seja necessária uma mudança conceitual em que passemos a entender as próprias plataformas como entes políticos, pondo questões políticas e democráticas diretamente em relação às plataformas. A questão deixa de ser como o direito deve regular as plataformas, e passa a ser como as próprias plataformas controlam as nossas condutas; deixa de ser o quanto os atos do Estado em relação às plataformas possuem legitimidade democrática, e se torna como democratizar as próprias plataformas. Afinal, como aponta o economista Yannis Varoufakis no seu livro recente “Tecnofeudalismo”, atualmente as plataformas são como feudos medievais, ou seja, entidades politicamente despóticas e economicamente fundadas no trabalho não-remunerado, ao mesmo tempo em que seus algoritmos manipulam a circulação de discurso sem qualquer transparência. A Academia, sendo um espaço que nos permite refletir para além das demandas imediatas do presente, precisa desde já produzir novos conceitos por meio dos quais demandas políticas e democráticas possam ser endereçadas às plataformas – seja às que temos ou às que ainda podemos imaginar e construir.

Fórum: Uma das críticas das big techs contra o PL 2630/20 é a alegação de que não teriam responsabilidade sobre os conteúdos veiculados nas plataformas e, por isso mesmo, não devem responder pelas ações dos seus usuários. O que é “tecnomia” e como esse conceito pode lançar luz sobre os problemas que surgem no debate a respeito da regulamentação e, consequentemente, da liberdade de expressão?

JM: Eu usei esse conceito de “tecnomia” na minha tese de doutorado para falar de como as tecnologias não são só potenciais objetos de regulação, mas têm a sua própria normatividade, ou seja, elas próprias regulam os espaços que criam através do próprio código e das suas interfaces. “Techné” remete à técnica, é claro, e “nomos” ao direito e à norma. Vale lembrar que, nos primórdios da internet, o ativista ciberlibertário (e compositor para a banda Grateful Dead) John Perry Barlow escreveu uma “declaração de independência do ciberespaço”, em que ele afirmava que a internet não só não deveria ser regulada por Estados, mas que seria inerentemente, estruturalmente impossível de ser regulada. Mas esses eram outros tempos da internet, a chamada Web 1.0. Com o advento da Web 2.0, ligada às grandes plataformas e à governança baseada em dados, há um reconhecimento geral de quem estuda o assunto de que a internet já não é mais o espaço libertário vislumbrado por Barlow. Isso não é tanto porque os Estados tenham conseguido regular a internet, mas sobretudo por conta do tipo de regulação próprio das plataformas, que Barlow não previu. Agora, se isso significa que as plataformas são ou devem ser responsáveis pelas ações dos seus usuários me parece um falso problema. A questão não é tanto se o indivíduo ou a empresa são responsáveis perante o direito, mas sim que esse conceito mesmo de responsabilidade é interno a uma lógica jurídico-política que as plataformas estão desestabilizando. Por isso insisto que os conceitos jurídicos mesmos, como no caso o de responsabilidade, precisam urgentemente ser repensados para o contexto das plataformas. Como esse conceito se transforma, por exemplo, a partir do momento em que já não temos um cidadão perante o Estado ou um indivíduo negociando com uma empresa, mas um usuário ou perfil agenciado a uma plataforma?

Fórum: No seu trabalho você também mobiliza o conceito de “tecnodiversidade”. Como você imagina que outras cosmologias podem nos ajudar a pensar nos impasses do que você caracteriza como “tomada da nuvem”?

JM: O que chamo de “tomada da nuvem” é o processo de que acabo de falar, em que a web libertária dos hiperlinks foi colonizada pelas plataformas. O filósofo da tecnologia chinês Yuk Hui propôs os conceitos de cosmotécnica e tecnodiversidade para lidar justamente com o que ele vê como um mau direcionamento da tecnologia em escala planetária. Segundo Hui, o sistema técnico atual é uma espécie de monocultura, ou melhor, uma monotécnica, fruto da universalização da cosmotécnica moderna/ocidental, isto é, da concepção e experiência da técnica características da modernidade europeia, ligada à instrumentalização da natureza como meio para fins humanos. Isso nos estaria levando não só à radicalização da exploração do humano pelo humano, mas também à catástrofe ecológica já em curso. Para desviar esse direcionamento, Hui propõe que outras “civilizações” (eu prefiro “povos”, afinal as cosmotécnicas indígenas sempre foram colocadas, nas divisões tradicionais, ao lado dos “selvagens”, e não dos “civilizados”) implementem, a partir das suas próprias cosmovisões, concepções diferentes da tecnologia. Seria possível, assim, multiplicar as cosmotécnicas, quebrando o monopólio da tecnologia moderna em favor da tecnodiversidade. Hui fez um estudo aprofundado da cosmotécnica na tradição chinesa, remetendo ao Confucionismo, ao Taoismo etc. Na América Latina, acredito que precisamos olhar para a diversidade das cosmotécnicas indígenas, afrodiaspóricas e suas recombinações contemporâneas para produzir experimentos alternativos às plataformas que temos hoje.

Fórum: De quais formas essa proposta de pensamento tem politicamente se organizado atualmente?

JM: Não me parece que haja muitos experimentos, até o momento, que levem a sério as ideias de cosmotécnicas e tecnodiversidade. Existem mais movimentações no sentido da crítica ao “capitalismo de plataformas” (Nick Srnicek) e da busca de alternativas como um socialismo de plataformas (James Muldoon) ou comunismo de plataformas (Joss Hands), bem como no cooperativismo. Aqui no Brasil temos uma iniciativa muito interessante que mapeia e reflete sobre as tensões entre o mundo do trabalho e as plataformas, a DigiLabour. Esses movimentos muitas vezes ficam mais no plano especulativo, já que a organização da luta dos trabalhadores de plataformas é muito dificultada pela própria dinâmica do modelo, mas há sem dúvida construções, reiterações e conquistas. Isso tudo, em todo caso, é pensado e operado no interior de uma cosmovisão moderna/ocidental, ou seja, não toca tanto o problema da tecnodiversidade, permanecendo a questão, por exemplo, de como um eventual socialismo ou comunismo de plataformas encaminharia as questões dos povos indígenas ou da crise climática. Existem processos de apropriação de “altas” tecnologias por povos não-modernos, como, por exemplo, a combinação de drones, aplicativos e arco-e-flecha por indígenas para proteger seus territórios da invasão de grileiros e garimpeiros. Yuk Hui, quando trabalhava com Bernard Stiegler, também experimentou com a criação de uma rede social que não fosse baseada em usuários individuais, mas em coletivos. Mas não há hoje, que eu saiba, efetivas alternativas de plataformas que busquem se basear em cosmovisões outras-que-modernas. É uma discussão que está apenas surgindo no horizonte, mas que nem por isso é menos interessante e urgente.

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