O neoliberalismo desmoronando e o Brasil excluído dos grandes acordos regionais

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Por Maria Luiza Falcão Silva

Os principais jornais americanos, dentre eles o New York Times e o Washington Post, estamparam a partir de 23/05, matérias sobre a ida do presidente Joe Biden à Ásia. O que está em jogo são novas alianças no Pacífico e Índico e uma narrativa que questiona os resultados de uma das mais importantes teses do modelo neoliberal: o livre comércio. Há o reconhecimento de que o livre comércio entre países fracassou, e a teoria de benefícios derivados do comércio em termos de bem-estar social das populações dos diferentes países e, do mundo como um todo, mostrou-se falsa.

Assim, a Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995, visando promover a liberalização do comércio em nível mundial, agregando 164 países, está em crise. Um de seus principais objetivos é a garantia de condições ‘justas’ de comércio entre as nações de forma a favorecer uma troca mais equitativa e menos sujeita a práticas consideradas ‘desleais’ como dumping e imposição de barreiras – tarifárias e não tarifárias. Os Estados Unidos, por meio do ex-presidente Donald Trump e do Partido Republicano – sua ala mais conservadora – propuseram o esvaziamento da OMC. Aliás, não só da OMC mas, também, das instituições que emergiram depois da Segunda Guerra Mundial, como a própria Organização das Nações Unidas (ONU) e outras a ela vinculados, como a Organização Mundial da Saúde (OMS).  As ideias difundidas pelo trumpismo, totalmente encampadas por sua versão tupiniquim, o bolsonarismo, se opõem ao multilateralismo em defesa da posição hegemônica, colonialista e imperialista, dos Estados Unidos. O Brasil da era Bolsonaro é um dos principais exemplos, rompendo com posições longamente defendidas pela diplomacia brasileira de integração regional, fortalecimento das relações entre países do Sul, preocupação com a agenda ambiental, defesa dos direitos humanos e sociais, e nos levando à condição de párias no plano internacional.

A necessidade de reformas nas instituições multilaterais é um desiderato também das esquerdas, como forma de refletir uma nova configuração de forças que prevalecem hoje no Mundo, com o crescimento espetacular da China e da Índia, embora menor, mas igualmente dinâmico, recuperação da Rússia (antes da guerra na Ucrânia e as sanções dela decorrentes) e industrialização de inúmeros países da Ásia que, inicialmente, se agruparam em torno do Japão – os “tigres asiáticos”. Urge discutir o papel que essas entidades terão na retomada da economia mundial diante das dificuldades impostas pela epidemia da Covid-19 e dos conflitos no Leste Europeu. Estão de alguma forma defasadas, uma vez que criadas em realidade totalmente diversa da atual. O presidente, que não gosta de trabalhar e muito menos de pensar estrategicamente, deixa o Brasil totalmente isolado nos principais fóruns e acordos que configurarão a nova geopolítica mundial. 

De acordo com matéria veiculada no “The Morning do The New York Times” de 23/05/2022 e assinada por David Leonhardt, a maior globalização das trocas internacionais prometida por economistas do mainstream e apropriada por políticos tanto do partido Democrata, quanto do Republicano, com o argumento de que o livre comércio “aumentaria o crescimento econômico – e com o resultado desse crescimento, o país poderia compensar qualquer trabalhador que sofresse com o aumento do comércio, não funcionou assim. Em vez disso, o livre comércio contribuiu para a estagnação dos padrões de vida de milhões de americanos da classe trabalhadora, diminuindo o número de empregos bem remunerados e de colarinho azul. Muitas medidas de bem-estar – até mesmo a expectativa de vida – diminuíram nos últimos anos.”(1)

No governo do presidente Barack Obama, os EUA negociaram um acordo comercial importante – a Parceria Trans-Pacífico (T.P.P), em 2016. (2) Membros de ambos os partidos o criticaram, e o Senado se recusou a ratificá-lo. Entre os países envolvidos figuravam México, Chile, Peru, Japão, Canada, Cingapura e os Estados Unidos, dentre outros, que representavam algo em torno de 40% do PIB Global. Donald Trump, em novembro do mesmo ano, ganhou a presidência em parte com uma plataforma anticomércio internacional, e retirou formalmente os EUA do T.P.P. Acordos regionais de comércio são tentativas de países combaterem juntos os efeitos perversos da globalização sobre determinada região ou grupo de países.

Obama visava defender os interesses dos Estados Unidos frente aos agrupamentos regionais que se formavam, especialmente os da Ásia. Percebendo os limites do livre comércio, o discurso de Obama elaborava narrativas do tipo: “construir muros para nos isolarmos da economia global seria um tiro pela culatra na economia americana” ou: “A China está negociando um acordo comercial que dividiria alguns dos mercados que mais crescem no mundo às nossas custas, colocando empregos, negócios e bens americanos em risco”. O presidente americano, à época, referia-se à tentativa de Parceria Econômica Abrangente Regional (RCEP na sigla em inglês) arquitetado pela China. De acordo com Obama, “esse acordo comercial não impedirá a concorrência desleal entre empresas estatais subsidiadas pelo governo. Não protegerá uma Internet livre e aberta”. Há “falta de proteção da RCEP para propriedade intelectual, padrões trabalhistas e meio ambiente”.  

O RCEP, que estava em negociação desde 2016, só veio a ser finalizado em 01/02/2022, mesmo mês que iniciou a guerra na Ucrânia. Engloba dez países da Ásia e do Pacífico em torno da China agruparam-se Austrália, Brunei, Camboja, Japão, Laos, Nova Zelândia, Cingapura, Tailândia e Vietnã, que juntos representam 30% da população e do PIB mundial. Será o maior bloco econômico do mundo. O tratado prevê a eliminação de 90% das tarifas alfandegárias entre os países signatários nos próximos 20 anos. O acordo também define regras comuns para o comércio de bens e serviços, propriedade intelectual, comércio eletrônico e concorrência. A Coreia do Sul, Malásia, Filipinas e Birmânia podem vir a aderir em breve. Estão ausentes: os Estados Unidos, no lado do Pacífico, a Índia, no sul da Ásia, e a Europa. (3)

A recente viagem do presidente Biden à Ásia, sua primeira desde que assumiu o cargo, foi para assinar um acordo que espera representar o futuro de sua política comercial. Intitulado Indo-Pacific Economic Framework, em português Estrutura Econômica Indo-Pacífico, inclui  13 países: a Austrália, Brunei, Estados Unidos, Índia, Indonésia, Japão, Coréia do Sul, Malásia, Nova Zelândia, Filipinas, Cingapura, Tailândia e Vietnã.  A China foi mantida fora.

Segundo fontes de Leonhardt, essa nova estrutura é central à ‘nova política pós-neoliberal’ da administração Biden. Ele explica que em relação ao T.P.P. de Obama, a distinção crucial é que esse novo acordo não envolve o que os economistas chamam de ‘acesso ao mercado’, por meio de tarifas e regulamentações reduzidas. Em vez disso, o acordo gira em torno de uma maior cooperação em áreas como energia limpa e política de internet; ajuda mútua para evitar interrupção  nas cadeias globais de suprimento, tal que se um surto de algum vírus  acontecer, em um dos treze países que assinam o acordo, que leve  ao fechamento de alguma fábrica, em um país X, por lockdown, como na epidemia da Covid-19,  uma fábrica de backup, em outro país Y, estará pronta para aumentar com agilidade  a produção e minimizar a escassez em todo o mundo.(4)

A movimentação de aviões caças chineses e russos nas zonas de defesa da Coreia do Sul e do Japão, nos dias de presença de Biden na região, sinalizam que China e Rússia estão vigilantes. Essa movimentação aconteceu logo após o presidente falastrão e inconveniente, Joe Biden, prometer defender militarmente Taiwan no caso de um ataque chinês.  O presidente chinês, Xi Jinping, já afirmou que apoiar a independência de Taiwan é “brincar com fogo”. Parece ser o momento mais tenso das relações entre China e Estados Unidos desde o restabelecimento de relações diplomáticas em 1979.

O Brasil de Bolsonaro está totalmente fora desses acordos. Estamos marginalizados das principais cadeias globais de valor, fundamentais para não interromper suprimentos de matérias primas para inúmeros segmentos, inclusive para o setor de saúde – medicamentos, vacinas etc. – que vão se formando em escala mundial e que são fortalecidas por esses agrupamentos regionais.

Inúmeras questões permeiam essa discussão: em que medida o regionalismo beneficia ou prejudica o processo de liberalização mundial do comércio? O regionalismo contrapõe-se ao multilateralismo? O regionalismo entra em choque com o princípio mais importante que rege o comércio multilateral, o da cláusula da nação mais favorecida, segundo a qual as vantagens comerciais oferecidas a um dos membros da OMC devem ser estendidas aos demais (princípio da não-discriminação)? Até que ponto os processos de integração regional atuam como complementares ou dificultam alcançar os objetivos defendidos pela OMC?  Está em jogo uma arquitetura nova para o comércio e as relações entre países. A guerra na Ucrânia levará a transformações mais profundas e fortalecimento de novas alianças.
Os blocos econômicos regionais foram sendo criados, em parte, para enfrentar a competitividade da globalização. Visam atender aos interesses de seus membros, em detrimento do chamado “livre mercado”. Sobre esse aspecto, a regionalização contrapõe-se à globalização. Com relação aos países não-participantes, os efeitos excludentes são os mesmos da globalização. Isolar-se desse debate pode ser fatal.

O Brasil, em governos anteriores, sempre teve atuação ativa e protagonista em blocos regionais na América Latina – Mercosul e Alca.  Em blocos mais amplos atuou de forma proativa no BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – que envolve os maiores emergentes de cada continente.  

A ‘era Bolsonaro’ tem desprezado essas alianças e nos levado a infinitas perdas nas relações com o resto do mundo, fazendo jus ao compromisso explicitado por ocasião de   recebimento da faixa presidencial das mãos do ex-presidente Michel Temer, em janeiro de 1919. Naquela ocasião Bolsonaro afirmou que uma das suas principais missões era “retirar o viés ideológico de nossas relações internacionais”.  A partir disso, o presidente submeteu-se aos Estados Unidos e Israel.

Entre 22-26 de maio, realizou-se o Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, reunindo líderes de países, presidentes de banco centrais, banqueiros e representantes do setor empresarial privado, para discutir a situação atual da economia global e como lidar com os novos desafios. O Ministro da Economia do Brasil Guedes teve a petulância de afirmar que todos os presidentes de bancos centrais erraram em lidar com a crise atual, menos o do Brasil. Foi alvo de muitas risadas. Não somos mais levados a sério em qualquer desses fóruns internacionais.

Resistiremos até 2023? Acho que o mundo inteiro está de olho nas eleições de outubro. O Brasil, afinal, está entre as dez maiores economias do mundo. Não podemos desanimar. O Brasil sobreviverá a Bolsonaro.

Notas

(1) David Leonhardt, The Morning News, New York Times, 23/05/2022

(2)  https://exame.com/mundo/obama-comemora-assinatura-do-acordo-transpacifico/New York 

(3)Veja mais em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2022/01/02/rcep-formada-em-torno-da-china-zona-de-livre-comercio-pode-se-tornar-a-maior-do-mundo.htm

(4) Vide nota 1.

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