Ainda sobre as eleições na Argentina

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Por Adhemar S. Mineiro*

No último dia 13 foram realizadas as primárias na Argentina, as chamadas PASO (Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias), como apontado em artigo que escrevi no Terapia Política há duas semanas. Nessas primárias, votaram cerca de 69% do eleitorado, um número historicamente baixo (só para ter uma referência, nas últimas primárias, há quatro anos, votaram pouco mais de 76%). De qualquer maneira, os números servem para uma análise mais fina do processo eleitoral argentino dos próximos meses, com o primeiro turno marcado para 22 de outubro, e o segundo turno pouco menos de um mês depois.

Os resultados das primárias, para além de terem mostrado pouca empolgação em geral, foram surpreendentes e assustadores, por um lado, e dão margem a muito debate sobre o que vai acontecer no processo eleitoral.

O surpreendente e assustador foi o desempenho do candidato da extrema direita, eufemisticamente rotulado de “libertário” por setores da grande imprensa argentina que assim evitam colocar um rótulo negativo nesse candidato, e de “anarco-capitalista” por ele mesmo e muitos apoiadores. Javier Milei, esse candidato, tinha registrado muitos revezes no processo de preparação para as primárias, especialmente em várias das províncias argentinas, e ainda acusações de que estaria “vendendo” a possibilidade de candidaturas em sua coalisão (denominada A Liberdade Avança). Assim, os cerca de 30% de votos que recebeu nas primárias, liderando o processo, surpreenderam, pois o que era esperado era que ficasse atrás dos candidatos dos blocos mais tradicionais.

Entre estes, a frente da direita tradicional (Juntos pela Mudança) recebeu um pouco mais de 28% dos votos, e foi onde a disputa foi mais acirrada. Venceu e levou a candidatura presidencial Patrícia Bullrich, ex-ministra do governo Macri, e a que se colocava mais à direita entre os candidatos que disputavam, com cerca de 16% dos votos. Seu contendor, Horácio Rodriguez Larreta, prefeito da Cidade de Buenos Aires, teve cerca de 12% dos votos, apresentando um perfil mais ao centro do espectro político, e mais técnico.

O discurso de Bullrich foi bem à direita, tentando disputar os votos da extrema direita e trazê-los para a sua coligação. Assim, se pode dizer que os votos capitalizados por um discurso de extrema direita perfazem cerca de 46% do eleitorado argentino (lembrando que, no país vizinho, 45% dos votos decidem as eleições, ao contrário do caso brasileiro, em que no primeiro turno são necessários 50% mais um voto para ganhar).

Ou seja, nesse primeiro momento, se o quadro das primárias se projetar nas eleições de outubro (e contando que os eleitores que não votaram nas primárias se distribuam na hora de votar da mesma forma que os que votaram), poderia se esperar uma vitória da extrema direita, e mais provavelmente do candidato Milei. Mas há que observar que Bullrich e Milei vão disputar os mesmos eleitores, em uma briga de foice. E, ao radicalizar o seu discurso à direita para disputar os eleitores de Milei, Bullrich pode não conseguir administrar o setor centrista de sua coalisão, que pode se assustar com o discurso extremo.

Finalmente, temos o bloco peronista (União pela Pátria), com todas as suas divergências, que teve cerca de 27% dos votos, com o principal candidato, o ministro da Economia do atual governo, Sergio Massa, com cerca de 21% dos votos, contra cerca de 6% de Juan Grabois, um jovem contendor com um programa bem mais à esquerda que Massa, no qual talvez o principal ponto seja a negação do acordo com o Fundo Monetário Internacional que o atual ministro da Economia e candidato acabou de negociar.

Massa comemorou o fato de ser o segundo candidato mais votado (teve 21%, contra os 16% de Bullrich) e seu discurso já começa a buscar a polarização com Milei como estratégia eleitoral. É preciso observar se Grabois, com quem disputou, e que já disse que quer negociar pontos de sua plataforma com o ministro da Economia, realmente está dizendo isso para valer (já que, apesar da derrota, teve votação expressiva para um candidato pouco conhecido, aglutinando uma juventude à esquerda no peronismo) ou se foi candidato apenas para fechar as portas para um melhor desempenho da extrema esquerda.

Há que se recordar que a extrema esquerda, representada pela Frente de Esquerda e de Trabalhadores, também segue na disputa, tendo superado a barreira percentual das primárias, e tem como candidata Myriam Bregman, que venceu a disputa interna. Assim, o discurso anti-acordo com o FMI estará presente na campanha. Outro candidato que também vai disputar a presidencial, viabilizado pelas primárias, é Juan Schiaretti, governador de Córdoba, da coalisão “Fazemos por nosso País”, uma frente de grupos regionais. O desempenho desta frente regionalista pode ser importante na disputa, já que o candidato Milei ganhou em quase todas as províncias do interior, então o crescimento de Schiaretti pode significar a redução de votos de Milei.

A disputa está começando quente e polarizada. Um quadro bem complicado para o processo de integração sul-americano, para o qual a vitória de Milei poderia representar um retrocesso, em especial nas relações com o Brasil. Outro ponto importante é uma poderosa contradição na área econômica: há vários anos, o principal parceiro econômico da Argentina (e não é só comércio) é a China, e o candidato de extrema direita faz um discurso anti-China e pela dolarização da economia. A ver como essa relação econômica com a China é tratada na campanha, mas pode ter consequências imprevisíveis para setores econômicos na Argentina, como o agronegócio e a mineração.

Finalmente, focando na experiência brasileira, é preciso observar como uma vitória de um candidato de extrema direita que tem várias propostas bem fora do esquadro mundial, como por exemplo o fim do Banco Central, pode ser equilibrada pela institucionalidade e o poder do Congresso e da Justiça, por exemplo. Várias das propostas dependem da aprovação legislativa, e evidentemente candidatos em campanha não anunciam como vão negociar com o Congresso, apenas falam em impor suas propostas. No Brasil, quando eleita, a extrema direita teve seu poder em parte regulado pelo Congresso. A ver o que acontece na Argentina, no caso da eleição do candidato Milei, que muito provavelmente não terá maioria congressual.

Mas, como resumo, vale dizer que a extrema direita mostrou força surpreendente nesse processo das primárias. O peronismo mostrou resiliência, apesar da crise, mas isso não é novo na Argentina. E a direita tradicional ficou com a batata quente neste momento, dividida em candidatura e também quanto ao seu rumo.

Publicado anteriormente em Terapia Política

*Economista, doutorando do PPGCTIA/UFRRJ, membro da Coordenação da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia-RJ e assessor da Rede Brasileira pela Integração dos Povos.

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