A democracia e o direito humano à alimentação

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Nathalie Beghin, Abed-DF.

Democracia pressupõe a participação de todas as pessoas que habitam um determinado Estado nacional na vida em sociedade. Democracia também pressupõe o respeito à vontade da maioria. Não há democracia sem a realização progressiva dos direitos humanos. Contudo, no Brasil de Jair, mais de 33 milhões de pessoas, o que corresponde à toda a população do Peru, tem seu direito à alimentação diuturnamente violado. E mais: a situação piorou em relação à 2020, quando o número de pessoas passando fome era de 19 milhões, um aumento de 73% em apenas dois anos.

Uma das principais causas da volta de índices alarmantes de insegurança alimentar grave no Brasil – havíamos debelado esse flagelo em 2014, quando o país saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas – foi o desmonte do arcabouço institucional de políticas públicas nacionais de promoção do direito humano à alimentação adequada que havia sido progressivamente estruturado no país desde os anos de 1990, com maior ênfase a partir de 2003.

Em poucas canetadas, os governos Temer e Bolsonaro acabaram com o aumento real do salário mínimo e com políticas robustas de emprego e renda, iniciativas essenciais para promover o acesso à alimentos em quantidades e qualidades suficientes. Abandonaram medidas de fortalecimento da agricultura familiar, fundamental para a produção de alimentos básicos, aqueles que comemos todos os dias, o que contribuiu para elevar a inflação de preços dos alimentos e para o aumento da fome. Deixaram a mingua o Programa Um Milhão de Cisternas, central para garantir o acesso à água tanto para o consumo humano quanto para a produção de alimentos no semiárido.

Além disso, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foram enfraquecidos de tal modo que pouco mitigaram o problema da fome. Os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família e seu sucessor o Auxilio Brasil, além de deixar sem atendimento milhões de famílias elegíveis, perderam suas necessárias conexões com os sistemas de assistência social, saúde e educação. E, é conhecida a dificuldade crescente que pessoas empobrecidas idosas ou com deficiência têm para acessar o benefício assistencial de um salário mínimo.

O fechamento de conselhos de políticas públicas, como foram os casos do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf) e da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo) impossibilitaram que as vozes das pessoas mais afetadas pela fome pudessem se manifestar e apresentar suas demandas.

A esse dramático quadro se soma a adoção de políticas fiscal e monetária contracionistas. Cortes expressivos no orçamento da União associados a sucessivas elevações da taxa Selic resultaram no aumento do desemprego e do endividamento e na queda da renda dos trabalhadores e das trabalhadoras. E, até hoje não foi realizada uma efetiva reforma tributária que instaure um sistema de mais justo e inclusivo

Como se não bastasse, foram realizadas reformas trabalhista e previdenciária que em nada contribuíram para a retomada econômica, ao contrário, alimentaram a precarização no mercado de trabalho.

Essa situação agrava as desigualdades raciais e de gênero, pois são a população negra e as mulheres as mais afetadas pela fome. Segundo a mais recente pesquisa sobre o tema, realizada pela Penssan em parceria com o Instituto Vox Populi, em 2022, 65% dos domicílios comandados por pessoas negras convivem com restrição de alimentos; entre os brancos esse percentual é de 46,8%. No que se refere à fome, nas famílias chefiadas por pessoas brancas, o percentual de insegurança alimentar grave é de 10,4%; já entre os negros, salta para 18,1%.

Ainda de acordo com os dados da Penssan, cerca de 2 em cada 3 lares cujo principal responsável é mulher conviviam com algum grau de insegurança alimentar. E mais: nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3% em apenas dois anos. Nos lares que têm homens como responsáveis, a fome passou de 7% para 11,9%.

Esses dados desoladores evidenciam que não pode haver democracia quando as necessidades básicas, como é o caso da alimentação, não são atendidas. Evidenciam, ainda, um agravamento rápido e recente da miséria, do racismo, do sexismo e do patriarcado que são consequência de um governo que deseja a morte dos pobres, indígenas, negros e das mulheres e que favorece a defesa de interesses das elites que buscam, acima de tudo, manter seus privilégios. Paulo Guedes, ministro da Economia, e Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, são a melhor expressão da captura das instituições públicas e do enfraquecimento da democracia que, no Brasil, não garante os mesmos direitos para todas as pessoas.

Os desafios de um novo governante que aposte na democracia e na realização de direitos humanos são abissais. Daí a importância de cobrarmos nas eleições as principais medidas de combate à fome para os 100 primeiros dias de governo, em 2023. Essas serão definidoras dos rumos que a nova gestão irá tomar.

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