Regulamentação do mercado como defesa da sociedade

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Ilustração: Mihai Cauli

Por Luiz Martins de Melo*

Desde que se tornou óbvio o fracasso espetacular da teoria econômica moderna para enfrentar a Crise Financeira Global (CFG) de 2008, a busca por formas alternativas de organizar a economia se intensificou. A grande maioria das alternativas que surgiram oferecem pequenos ajustes e remendos e permanecem dentro da estrutura metodológica da economia neoclássica.

Uma alternativa radical, entendida aqui como uma forma diferente de pensar a economia fora da tradição neoclássica, tem que ter uma visão baseada em um conhecimento profundo da história do surgimento do capitalismo. Um grande obstáculo para isso é viver em uma sociedade de mercado que molda nossas mentalidades e comportamentos, tornando difícil imaginar alternativas radicais. A formulação de uma alternativa radical requer estar fora das correntes hegemônicas da história que moldaram as sociedades modernas. Esse distanciamento é fundamental para ver como nossas teorias econômicas, políticas e sociais sobre o mundo foram conformadas por forças externas e evoluíram no tempo. Estudar essa arqueologia do conhecimento nos oferece insights sobre os processos históricos que conformaram as nossas ideias e nos dá as ferramentas necessárias para nos libertar das fronteiras estreitas criadas por nossas próprias experiências passadas.

A descrição histórica do surgimento da economia de mercado mostra-a como concorrente da economia tradicional e não como formulam os teóricos liberais que esse modo de produção é atemporal, não tem história. As suas leis estão acima do tempo. Ele é uma “natureza social”, como o mundo natural.

A economia de mercado venceu esta batalha, e as ideologias que a apoiam venceram a batalha correspondente no mercado de ideias. Hoje, a vitória da economia de mercado é tão completa que se torna difícil para nós imaginarmos sociedades onde o mercado não desempenhe um papel central. Ao contrário dessa ideia, os mercados tiveram uma importância marginal nas sociedades tradicionais ao longo da história. A economia de mercado surgiu após uma batalha prolongada contra essas tradições.

A mercantilização dos seres humanos e da terra exigida pelo domínio do mercado causou danos tremendos à sociedade e ao meio ambiente. O valor da vida humana foi degradado ao seu poder de ganho. Isso permite os cálculos sombrios feitos pelas potências hegemônicas de que sacrificar meio milhão de crianças iraquianas vale o controle do petróleo. Da mesma forma, preciosas florestas tropicais, recifes de corais, plantas, peixes e espécies animais que levaram milhões de anos para serem formados e não podem ser substituídos a qualquer preço, são reduzidos ao valor da madeira, alimentos ou produtos químicos. Esta é a causa raiz das catástrofes sociais e ambientais que enfrentamos atualmente.

Todas as sociedades enfrentam a tarefa econômica de produzir e prover bens e serviços para todos os membros da sociedade. Todas as sociedades tradicionais têm usado mecanismos não mercantis baseados na cooperação e responsabilidade social para prover aos membros que não podem cuidar de suas próprias necessidades. É apenas em uma sociedade de mercado que os serviços de educação, saúde, moradia e bem-estar social estão disponíveis apenas para aqueles que podem pagar por eles.

Os mecanismos de mercado para fornecer bens e serviços aos membros entram em conflito com outros mecanismos sociais e são prejudiciais à sociedade. Eles emergiram para a proeminência central na Europa após uma batalha prolongada, que foi vencida pelos mercados sobre a sociedade devido a certas circunstâncias históricas peculiares a essa região. A substituição dos principais mecanismos que regem as relações sociais por aqueles compatíveis com os mecanismos de mercado foi traumática para os valores humanos. Terra, trabalho e dinheiro são cruciais para o funcionamento eficiente de uma economia de mercado. A sociedade de mercado converteu-os em mercadorias, causando danos tremendos. Isso envolve:

  • Transformar um relacionamento simbiótico e estimulante com a natureza em um relacionamento comercial de exploração da natureza;
  • Transformar relacionamentos baseados em confiança, intimidade e compromissos vitalícios em transações comerciais impessoais de curto prazo;
  • Transformar vidas humanas em mercadorias vendáveis, a fim de criar um mercado de trabalho.

Os mercados não regulamentados são tão mortais para a sociedade humana e o meio ambiente que a criação de mercados automaticamente coloca em ação movimentos para proteger a sociedade e o meio ambiente dos danos que eles causam. Paradoxalmente, é essa oposição aos mercados que permite que eles sobrevivam. Se isso não existisse, os mercados destruiriam a sociedade e o planeta. Por exemplo, a Grande Depressão dos anos 30 do século passado causou o colapso de muitas instituições de livre mercado e o governo interveio para sustentá-las e substituí-las. Da mesma forma, houve a intervenção massiva da GCF 2008. Esse movimento protetor e antimercado permitiu que o capitalismo sobrevivesse. Isso nos mostra que a história do capitalismo não pode ser entendida sem olhar para ambos os lados – as forças que tentam liberar os mercados de todas as regulamentações e as forças que lutam para proteger a sociedade dos efeitos nocivos da desregulamentação dos mercados.

Certas ideologias, que se relacionam com a terra, trabalho e dinheiro, e a motivação do lucro são necessárias para o funcionamento eficiente dos mercados. Em particular, tanto a pobreza quanto uma certa dose de insensibilidade e indiferença à pobreza são necessárias para o funcionamento eficiente dos mercados. A economia capitalista requer vendas, compra e exploração do trabalho, o que não pode ser feito sem criar pobreza e usá-la para motivar os trabalhadores. A santificação dos direitos de propriedade é outra característica essencial dos mercados. Assim, a existência de uma economia de mercado exige o surgimento de certas ideologias e mentalidades que são prejudiciais e estão em contradição com as tendências humanas naturais.

Os mercados têm sido frágeis e propensos a crises e oscilaram de desastre em desastre, conforme amplamente ilustrado pela CFG de 2008. A Segunda Guerra Mundial, a maior dessas crises, possibilitou um novo método para organizar assuntos econômicos. Na verdade, as ideias keynesianas eliminaram os piores excessos das economias de mercado, incentivaram e criaram o estado de bem-estar social para se contrapor ao comunismo e dominaram a cena por cerca de 30 anos após aquela guerra. No entanto, o sistema de mercado ressurgiu das cinzas e passou a dominar o globo numa assombrosa demonstração de poder a partir dos anos oitenta do século passado, com a vitória de Thatcher no Reino Unido e de Reagan nos EUA. Vendemos a natureza e o futuro de nossos filhos e estamos comemorando o lucro sem levar em conta os custos. A contabilização dos custos da destruição do meio ambiente, das espécies animais e da sociedade humana mostra que os custos do crescimento baseado no neoliberalismo têm sido muito maiores do que os benefícios.

A organização da produção em uma economia capitalista repousa essencialmente na exploração dos trabalhadores e requer o uso da pobreza como estímulo para motivar os trabalhadores a trabalhar. Isso significa que, se fornecermos renda básica universal, removeremos os incentivos à produção que estão no cerne dos sistemas capitalistas de produção. Em vez disso, temos que nos concentrar em garantir que todas as pessoas tenham o direito de ganhar um meio de vida decente. Isso pode ser acomodado dentro dos atuais sistemas de produção sem mudanças radicais. Soluções de longo prazo requerem mudanças mais radicais de mentalidade que reverteriam a grande transformação ao priorizar as relações sociais e subordinar o mercado à sociedade.

No mundo real, os governos emissores de moeda não têm restrições intrínsecas de gastos financeiros. Eles podem comprar o que estiver à venda em sua própria moeda, incluindo todos os trabalhadores desempregados que desejam trabalhar. O desemprego em massa é uma escolha política.

O governo deveria introduzir a garantia de emprego, fazendo uma oferta de emprego incondicional com um salário mínimo socialmente inclusivo para qualquer pessoa disposta e capaz de trabalhar. Nenhuma pressão inflacionária surge porque o governo não estaria competindo por mão de obra a preços de mercado. Não há oferta de mercado para os desempregados.

Publicado anteriormente em Terapia Política.

*Economista, doutor pela UFRJ, professor da graduação e da Pós-Graduação do IE/UFRJ, ex-diretor da Finep.

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