Novo livro organizado por José Celso Cardoso Jr. & Leandro Freitas Couto
Contracapa por Marcio Pochmann *
Interromper o modelo da decadência assentado no Estado empobrecedor e onipresente para poucos é a mudança necessária para retomar o caminho interrompido enquanto anseio de quem acredita na verdadeira democracia do Brasil para todos. Por isso, a negação ao mestre Sérgio Buarque de Holanda que, em 1936, definiu: A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido (Raízes do Brasil, p. 122).
Enfrentar o butim apropriado pela improdutiva economia política do rentismo é a essência da prevalência da democracia, pois insuportável na absurda concentração do poder, riqueza e privilégios. Só em 2022, o IBGE registrou quase um terço de sua população em situação de pobreza, com 60,1% dos brasileiros vivendo com até um salário-mínimo per capita e outros 31,8% com rendimento de um a três salários e apenas 8,1% com mais de três salários mensais.
Um país rico, mas submetido à asfixia da liberdade de produzir e trabalhar frente a imposição de pequeno grupo de privilegiados encastelados no Estado. A resposta à multidão de sobrantes e sem destino requer compreender a trajetória do debilitamento determinado pelo projeto neoliberal. Cada vez mais o terreno fértil da incerteza e desesperança.
O desprezo à solidariedade e à fraternidade aos que sofrem e mais precisam encontra na direita autoritária o fomento à salvação individual apoiada na heresia do mercado triunfador dos mais capazes. Pescam, assim, nas águas profundas do dilúvio da solidão que inunda frustrações individuais, tendo a perspectiva da redenção nacional associada ao messianismo político, fanatismo religioso e até banditismo social.
Ledo engano, pois os que anseiam a fada madrinha da estabilidade do mercado, odeiam direitos civis, políticos e sociais pertencentes ao Estado democrático. Consideram a política de igualdade destrutiva das hierarquias e desprezam o imperativo do sofrimento da marginalidade gerada, entendida como justa aos incompetentes e fracassados.
O abandono à melancolia idílica da realidade nacional exige ação convergente com as adversidades existentes no Brasil, fundamento da força popular. Por isso, o livro organizado por José Celso Cardoso e Leandro Freitas Couto constitui alento a animar a mudança necessária, antes que seja tarde.
* Marcio Pochmann é economista, pesquisador e professor universitário, presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
Apresentação: Ousadia para reconstruir
Gilberto Maringoni **
Foi preciso uma pandemia e a eclosão de uma guerra de repercussões globais para que uma ilusão aparentemente sólida, construída ao longo de meio século, se desmanchasse no ar. Trata-se da conhecida ideia de que a partir da desvinculação entre os valores de ouro e dólar, promovida pelo governo dos Estados Unidos no início dos anos 1970, as economias nacionais deveriam descartar planejamentos estatais e ter nos mercados desregulados seu polo dinâmico. O senso comum de que seria essencial haver liberdade para crescer – generalização vazia – se disseminou por toda parte, após a queda dos regimes socialistas do Leste europeu, duas décadas depois. A fase coincidiu com a consolidação do poder unilateral dos Estados Unidos.
A dupla crise atual – pandemia e guerra – mostrou a inconsistência dessas molas mestras da globalização neoliberal. Embora sejam fenômenos distintos, a doença e o conflito têm gerado consequências semelhantes: destruição de vidas, erosão de pactos de convivência, mudanças na organização do espaço urbano e rural e turbulências fundas na sociedade. Diante da hecatombe, os países ricos aceleradamente abandonam dogmas impostos pelos arautos da alta finança, recuperam o papel planejador de seus Estados e aumentam o protecionismo e a autarquização de suas economias.
Onde foi parar o mundo sem fronteiras e caudatário de um novo tipo de internacionalização? Onde foi parar o dinamismo infinito que viria com a privatização de bens públicos? Onde foi parar o mercado como organizador universal da vida humana? Em março de 2020, no início da pandemia, o presidente francês Emmanuel Macron fez um pronunciamento televisivo de pouco mais de 20 minutos. Por seis vezes, a pontuar o ritmo da fala, o chefe do palácio do Eliseu repetiu: “Estamos em guerra”.
O mote da guerra, a partir daí, disseminou-se pelo planeta, sendo reproduzido por governantes, políticos, gestores, médicos e outros profissionais de saúde. O tema belicista, usado em sentido figurado para explicar o combate à infecção viral, se tornou dolorosamente literal a partir da invasão da Ucrânia pela Rússia e permeia todas as controvérsias políticas e econômicas de grande envergadura, na terceira década do século.
O combate à pandemia só obteve êxito quando adquiriu dinâmica de defesa nacional contra um agressor externo, o vírus, e gerou iniciativas universais, planejadas e capazes de mobilizar e coordenar ações institucionais nas áreas de informação, redes de saúde, educação, pesquisa, assistência social, forças armadas e financiamento, estendendo suas dinâmicas coletivas à sociedade organizada. Algo aparentado a tais iniciativas ocorre quando governos se defrontam com aumento de migrações, elevações de preços de energia e insumos e queda da atividade econômica resultantes da guerra real.
As duas crises tiraram do limbo conceitual e prático as palavras Estado e Planejamento. A vida mostrou que o poder público só pode exercer plenamente suas funções se houver projeto, coordenação e sinergias entre suas diversas instâncias e em sua relação com a sociedade, o que inclui a iniciativa privada.
Não à toa, este livro tem por título uma quase convocação: Ousadia e Transformação: apostas para incrementar as capacidades do Estado e o desenvolvimento no Brasil. É uma obra sobre planejamento no sentido clássico da Economia Política. Os capítulos, agrupados em quatro partes, além das conclusões, foram produzidos entre 2018 e 2023, à exceção do primeiro, escrito em 2011. Ao analisar os anos mais dramáticos de nossa história recente, a obra se abre para o futuro, esboçando “O difícil caminho da reconstrução institucional no Brasil”, título do último capítulo.
Nos esforços a serem concentrados para se vencer a trilha da reconstrução e do desenvolvimento, vale a pena relembrarmos as palavras de Roberto Simonsen (1889-1948), o pioneiro do planejamento econômico no Brasil, escritas no último ano da II Guerra Mundial:
“O planejamento adotado nos países em guerra tem que ser substituído por outro que permita um razoável reajustamento às solicitações da paz. Se não forem tomadas a tempo as necessárias providências, verificar-se-ão, dentro em pouco, inevitáveis crises de proporções assustadoras (Simonsen, Gudin, 2010, p. 134).”
O alerta é incisivo e seu prazo de validade segue em vigor. Este livro traz importantes roteiros para saídas possíveis num regime democrático e participativo. Boa leitura e reflexão crítica!
** Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) e coordenador do Observatório de Política Externa Brasileira (Opeb) da mesma instituição.