NOTA TÉCNICA – A indústria de consultoria e o desmonte do aparelho de Estado

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A economista italiana e professora da University College London, Mariana Mazzucato, em entrevista publicada pelo jornal O Estado de São Paulo, em 2 de maio de 2023, faz fundadas críticas ao papel cada vez mais proeminente da indústria de consultoria junto às empresas e aos governos e, principalmente, aos resultados auferidos com o trabalho prestado por essa indústria. No Brasil, como de resto em todo mundo, essa crescente terceirização da gestão e do planejamento por parte do Estado teve início no final dos anos 1980, acentuou-se nos anos 1990 e tornou-se senso comum a partir dos anos 2000.

Essa renúncia do Estado em assumir uma tarefa que deveria ser indelegável, onde as consultorias deveriam ser a exceção, e não a regra, é o resultado da onda neoliberal que se espalhou pelo mundo e, de forma mais acentuada, nos países não-desenvolvidos ou em desenvolvimento, mais dependentes do auxílio financeiro das agências multilaterais (BID, Banco Mundial, FMI, que muitas vezes condicionavam apoio financeiro a “pareceres” de consultorias internacionais), todas seguindo a batuta do “Consenso de Washington”, que defendia o “Estado mínimo”, a privatização dos ativos estatais, e a globalização dos negócios, sob a enganosa promessa de que, agindo desta forma, as nações deixariam de vender seus produtos apenas para o mercado interno, atingindo o mundo. O resultado, como sabemos, foi muito diverso daquele prometido. E assim, em um Estado reduzido a tarefas básicas, ter uma burocracia atuante, que planeje e estabeleça estratégias para o futuro, não fazia mais sentido. Foi nesse campo fértil que floresceu a indústria da consultoria e se deu o desmonte do aparelho de Estado.

Mas nem sempre foi assim. Ao contrário, foi a existência de uma burocracia profissional, preparada intelectualmente, que deu suporte a grande transformação pela qual passou o Brasil, deixando de ser uma grande lavoura exportadora de café e cana-de-açúcar, intercalado por fazendas de gado, e pontuais núcleos industriais que produziam para o reduzido mercado interno, para se constituir em uma nação industrializada, urbana, com crescente níveis de alfabetização e participação social.

Para essa transformação duas instituições tiveram papel relevante. Ainda na vigência do Estado Novo, deu-se a criação do DASP (Departamento de Administração do Serviço Público), que foi concebido a partir do campo das ideias e dos projetos políticos em disputa à época, como uma instituição capaz de articular e reproduzir “intelligentsia” pública nacional dotada de teoria, métodos e função social. Foi fruto de uma visão de administração pública ancorada na atribuição da função dos administradores públicos, enquanto atores dotados de amplas responsabilidades no projeto de mudança social orientadas pela ação estatal (chave do modelo nacional-desenvolvimentista em construção no período).

Essa “intelligentsia” constituiu um estrato social com formação intelectual, capaz de compreender e interpretar a realidade social e elaborar prognósticos para sua intervenção. De orientação teórica nitidamente weberiana, o DASP foi um departamento primordial na execução dos objetivos do governo, organizando os orçamentos, classificando cargos do funcionalismo, introduzindo novos métodos e novas técnicas para os serviços burocráticos, organizando processos seletivos de funcionários por meio de concurso (meritocráticos) e criando cursos de aperfeiçoamento em administração pública, os primeiros no Brasil. Por intermédio do DASP, e dos “daspinhos”, em nível regional, promoveu-se a estruturação básica do aparelho administrativo do Estado para adequá-lo ao novo papel do Estado que então se instituía. Ou seja, o DASP, acoplado à estabilidade do funcionário público, entendido como servidor do Estado e não do governo de turno) ofereceu as ferramentas que permitiram que a centralização política e administrativa, núcleo central do modelo político do governo Vargas, se efetivasse de forma eficaz, contribuindo de forma inequívoca para as mudanças em curso.

A segunda instituição no processo de transformação do país, foi a Assessoria Econômica do segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), criada logo no início do mandato. Ela se constituiu no primeiro órgão permanente, vinculado à presidência da República, de planejamento econômico e de formulação de estudos, projetos e políticas estratégicas do ponto de vista do desenvolvimento nacional. Foi responsável pela idealização e efetivação de um verdadeiro projeto nacional de Estado, de economia e de sociedade. Sua atuação foi decisiva para a estruturação da Petrobrás, do BNDE (depois BNDES nos anos 1980),  bem como estabeleceu das condições tributárias que dariam origem à futura Eletrobrás, entre outras tantas instituições. Também desenvolveu estudos e elaborou políticas estratégicas que visavam a dotar o país de autonomia energética, o que incluía a energia nuclear e a biomassa, e estabeleceu as bases programáticas para a futura indústria automobilística,  já no governo de Juscelino Kubitschek.

Chefiada pelo economista baiano Rômulo Almeida, a Assessoria compôs-se de jovens quadros, muitos deles egressos do funcionalismo público organizado pelo DASP. Em contraposição à Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, também criada em 1951, que defendia o protagonismo dos capitais norte-americanos na industrialização brasileira e um menor papel governamental na alocação dos investimentos, a Assessoria Econômica caracterizou-se pela defesa do nacionalismo no campo industrial, ou seja, pela opção em basear a industrialização brasileira em capitais e recursos internos a partir de uma atuação mais proativa do Estado, que levasse em consideração o caráter social do desenvolvimento, de modo que a industrialização estivesse associada a uma política de ampliação do bem-estar social da maioria, gerando estímulos endógenos ao crescimento da indústria, reduzindo a dependência ao exterior.  A preocupação com a qualidade de vida dos trabalhadores e com as desigualdades sociais e regionais foi, então, plenamente incorporada à estratégia de desenvolvimento desenhada pela Assessoria.

A visão estratégica de Nação esposada pela Assessoria contemplava a integração nacional como princípio e motor do desenvolvimento econômico e social. As regiões mais atrasadas, como o Nordeste e a Amazônia, deveriam, por meio de adequado planejamento governamental, ser incorporadas à revolução industrial já em curso em São Paulo. Não como simples fornecedoras de matérias-primas, mas como centros industriais e tecnológicos que fortalecessem as cadeias produtivas brasileiras e gerassem complementaridades funcionais ao crescimento conjunto e harmonioso de todo o País. Por fim, para além de seu papel central no desenho do modelo de desenvolvimento brasileiro, deixou como legado cognitivo, órgãos de estudos, planejamento e de estratégia que, posteriormente, também foram vitimas do mesmo processo de sucateamento.

Coincidentemente, esse processo de desmonte das estruturas funcionais do Estado Nacional e dos entes federativos, que se mostrou mais evidente a partir da chegada ao Brasil dos primeiros ventos neoliberais, no final dos anos 1980, que ganhou força a partir dos anos 1990, é o período em que as consultorias passaram a adquirir importância junto às empresas e, principalmente, junto aos governos. Se pensarmos que o Estado foi, paulatinamente, renunciando à sua obrigação de planejar, gerir e estabelecer estratégias com vistas ao orientar suas ações para o futuro, pela promoção deliberada do desmonte de uma estrutura burocrática eficiente, intelectualmente avançada e comprometida com os interesses da nação, não é de se estranhar que essa função fosse terceirizada, pois não havia outra alternativa. Evidentemente, a não realização de concursos públicos regulares, que desse permanência ao corpo funcional do Estado, limitado pelas recorrentes políticas de ajuste fiscal, contribuiu – e muito – nesse processo.

Ocorre que tanto a indústria da consultoria, como as chamadas organizações sociais (prestadoras de serviços em algumas áreas), crescentes a partir do final do século passado, não têm compromisso algum com o resultado, até porque não há um corpo funcional capaz de auferir esse resultado. Assim, refém desses arautos do caos, ao Estado cabe, apenas, contratar novas consultorias para avaliar o trabalho realizado pelas anteriores, ou para propor estratégias para o futuro.

No momento em que o País, como resultado das eleições presidenciais de 2022, interrompe o processo de desmonte de suas estruturas administrativas, que teve seu apogeu no governo Bolsonaro, e o governo eleito pretende assegurar condições mais dignas à maioria da população, é também o momento para retomar seu papel de formulador de estratégias, de planejar o futuro e ser o indutor da economia. Para isso, não basta dar autonomia administrativa ao Ministério do Planejamento e Orçamento, desmembrando-o do Ministério da Fazenda. Tampouco a criação do Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos deve se limitar a um nome pomposo. Sem a efetiva requalificação dos servidores remanescentes, e a qualificação permanente dos que vierem a ser contratados (e que têm que ser contratados para a recomposição dos quadros que permita o bom funcionamento do Estado), esse processo de resgate da dignidade, com crescimento econômico e melhor distribuição de renda será apenas uma boa e louvável intenção.

Recentemente, mesmo com as desastradas gestões dos sucessivos ministros que comandaram a pasta, o Ministério da Saúde mostrou, através do SUS, a importância de uma estrutura administrativa eficiente no combate aos efeitos da pandemia de Covid-19. Mesmo convivendo com a falta de recursos, a não reposição dos quadros funcionais e a própria postura negacionista do presidente da República, a capilaridade do SUS, estabelecida ao longo de anos, foi crucial para mitigar os efeitos da pandemia, evitando que o número de vítimas fosse ainda maior.

Portanto, é o planejamento, a estratégia, a visão social e, fundamentalmente, a presença de uma burocracia pública eficiente e comprometida com o futuro do país, que permitirá que o desejado crescimento econômico seja capaz de alterar as condições degradantes em que se encontram milhões de brasileiros. E essa tarefa é indelegável, ainda mais para organizações privadas e do terceiro setor, cujo objetivo primordial é garantir um novo contrato, tão logo o atual finalize, sem compromisso com o resultado de seu trabalho e sem a preocupação de que o mesmo traga benefícios à população, através do governo contratante.


Grupo de Análise dos Impactos da Crise

Associação Brasileira de Economistas pela Democracia – ABED

Equipe Técnica: Adhemar Mineiro (Coordenação), Antônio Rosevaldo Ferreira da Silva, Eron José Maranho, Jaderson Goulart Junior, José Moraes Neto e Juarez Varallo Pont.

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