J. Celso Cardoso Jr. e Cesar Locatelli: Em meio à Pandemia, e além, ouviremos Furtado ou Friedman?

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deias para a retomada do planejamento estratégico público como alavanca para uma renovada capacidade governativa no Brasil

J. Celso Cardoso Jr.¹ e Cesar Locatelli²

É muito difícil negar que as relações sociais, econômicas e políticas têm, neste início de século XXI, se mostrado cada vez mais complexas, aceleradamente mais complexas. A natureza disruptiva dos efeitos renitentes da Grande Recessão de 2008, do célere avanço à catástrofe climática, das crescentes e insuportáveis desigualdades, entre países e mesmo dentro dos países, realiza, agora em 2020, um salto exponencial com a profunda crise econômica e social decorrente da pandemia do novo coronavírus. Atônitos, os governos manietados por anos de redução do seu papel, bem como pelo enfraquecimento do poder dos Estados nacionais, tentam lidar com tais fenômenos.

Esses são alguns dos paradoxos dessa etapa de dominância da forma global e financeirizada do modo de produção capitalista, permitindo ver com clareza sua insustentabilidade humana, ambiental e produtiva. E, numa conjuntura em que as sociedades e as economias mais parecem precisar da função de planejamento governamental de índole democrática, não se percebe sua valorização, nem ações que levem à sua reestruturação. Ao contrário, a PEC 188 de 2019 em tramitação legislativa prevê até mesmo a eliminação do PPA (Plano Plurianual de 4 anos), único instrumento formal de planejamento vigente no país, sem que nada semelhante ou melhor seja proposto em seu lugar. Apenas, é claro, a crença – já bastante desacreditada – numa suposta capacidade superior do livre mercado em realizar as grandes tarefas do desenvolvimento nacional.

Deste modo, como se já não bastassem o enfraquecimento dos Estados nacionais e as limitações da ação governamental, defrontamo-nos com graves divisões políticas internas e uma ausência quase completa de bons projetos, isso para não falar de planos para o futuro. O exemplo brasileiro reforça essa questão: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa”, disse Bolsonaro em Washington, em 2019.³

Assim, as primeiras impressões sobre o mundo pós-pandêmico parecem indicar a necessidade de trazermos um novo e melhor projeto de país ao centro das discussões. Precisamos de um novo e mais vibrante pacto sociopolítico, ao tempo em que retomamos os estudos e o aprimoramento das técnicas relativas ao planejamento e à prospecção estratégica, tanto em nível organizacional, nos setores público e privado, como em nível das políticas públicas e do próprio desenvolvimento nacional delas derivado.

Esses componentes de ação já se constituíam uma exigência antes da crise pandêmica, por decorrer da imensa heterogeneidade estrutural e crescente complexificação dos processos decisórios e das próprias sociedades contemporâneas, mas tornou-se ainda mais patente agora, diante da notória insuficiência e parcos resultados das ações estatais contra a crise em curso na maioria dos países.

Persiste o embate entre Friedman e Furtado

Os dois nasceram sob os auspícios da constelação de Leão. A diferença era de apenas cinco dias entre seus aniversários e, na idade, oito anos. O mais velho nasceu no Brooklyn, em Nova York, em 31 de julho de 1912, chamava-se Milton Friedman. O mais novo, Celso Furtado, nasceu em Pombal, na Paraíba, em 26 de julho de 1920. A proximidade entre seus nascimentos contrapõe-se à lonjura de suas visões de mundo, especialmente em relação ao papel dos governos desses últimos 100 anos. O que disseram, e principalmente, o que diriam, confinados em casa, onde certamente estariam em função da necessidade de distanciamento social, diante dessa catástrofe global?

Em uma série de palestras feitas pelos Estados Unidos, em junho de 1956, o liberal monetarista Milton Friedman não se cansava de repetir seu louvor à liberdade e seu horror a deixar funções – mesmo as intrinsecamente públicas – nas mãos do governo:

Constitui simples acidente o fato de tantas reformas governamentais das últimas décadas terem dado em nada? Que tantas grandes esperanças tenham sido reduzidas a cinzas? Teriam simplesmente os programas algo de errado?

Acho que a resposta é claramente negativa. O erro central dessas medidas reside no fato de tentarem, por meio do governo, obrigar as pessoas a agir contra seus interesses imediatos a fim de promoverem um suposto interesse geral. Tentam resolver o que se supõe um conflito de interesses, ou uma diferença de pontos de vista com relação a interesses, não por meio de uma estrutura que elimine o conflito ou tentando persuadir as pessoas a ter interesses diferentes, mas forçando as pessoas a agir contra seu próprio interesse. Substituem os valores dos participantes pelos que estão de fora; alguns dizendo a outros o que é bom para eles ou o governo tirando de alguns para beneficiar outros.

Estas medidas enfrentam, portanto, uma das mais poderosas e mais criativas forças conhecidas pelo homem – a tentativa de milhões de indivíduos de defender seus interesses, de viver suas vidas de acordo com seus próprios valores. É esta a razão principal de as medidas haverem tido, tão frequentemente, efeito contrário ao pretendido. É também uma das maiores forças da sociedade livre e explica por que os regulamentos governamentais não conseguem dominá-la.”

O desenvolvimentista brasileiro, Celso Furtado, por outro lado, rememora com alegria os primeiros resultados de sua criação mais célebre, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, a Sudene:

“Na área de ação da Sudene os programas iam sendo cumpridos dentro de seu cronograma de execução. Os recursos incluídos no Plano que aprovara o Congresso asseguravam meios para que avançássemos até 1965, quando chegaria a seu término o tumultuado mandato presidencial iniciado por Jânio Quadros. Eu estava determinado a dar minha tarefa por concluída nessa época. As instituições também envelhecem, mas o fazem mais rapidamente quando não renovam em tempo devido seus dirigentes.

Havíamos praticamente ocupado todo o espaço a que nos habilitara a lei que criara a Sudene. Surgira uma nova mentalidade na região. O número e a diversidade dos projetos industriais não deixavam dúvida sobre a afluência para o Nordeste de recursos, assinalando a reversão da velha tendência à fuga de capitais. Dificilmente se encontraria uma cidade na região que não se estivesse beneficiando dos investimentos em transporte, energia, saneamento básico e outros.

Vencida a inercial inicial, fácil seria multiplicar por dez o que estávamos fazendo: passar de 100 poços perfurados para 1.000, de 500 bolsas de estudo em escolas técnicas superiores para 5.000. Criara-se um clima de confiança no governo. Se um problema era entregue à Sudene, ninguém duvidava de que alguma solução seria encontrada.”

Pois a diferença mais marcante entre os dois repousa justamente na importância que atribuem ao peso e ao papel do Estado, seja como agente prejudicial e inibidor, nos termos de Friedman, ou como único agente capaz, segundo Furtado, de introduzir e estimular transformações estruturais na vida das pessoas que o habitam.

No Brasil, poucas décadas após o fim da escravidão, ao longo do período que vai de 1930 até os primeiros anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, a ação decisiva do Estado brasileiro e suas instituições foram fundamentais para a mudança de patamar da produção nacional em direção à industrialização. Datam desse período a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), a Fábrica Nacional de Motores (FNM), a Companhia Nacional de Álcalis (CNA), bem como a Petrobras e o BNDE inaugurados no início dos anos 1950. A diminuição dos laços de dependência externa, o relativo rearranjo da estrutura de classes, a complexificação da estrutura estatal e a construção de uma sociedade industrial moderna, ainda que regionalmente concentrada e desigual, foram fruto da ação organizada e induzida pelas mãos do Estado. Bem verdade que em um momento de quase trégua com o imperialismo que nos impedia a marcha.

Ao fim e ao cabo: onde nos trouxe o ideário neoliberal advogado por Friedman e tornado teoria econômica predominante desde o final dos anos 1970? A pandemia tem escancarado onde chegamos quando as pessoas agem, exclusivamente, em seu próprio interesse, quando mais e mais serviços públicos tornam-se mercadorias e passam a ter acesso restrito apenas a quem possui renda sob a forma monetária, quando o trabalho é continuamente precarizado e quando, na frente e no centro das ações das empresas privadas, estão os lucros.

A Prospectiva do Planejamento Estratégico Público no Brasil

A pandemia do novo coronavírus evidenciou as várias falhas do modelo individualista comandado pelo mercado, desde a falta de equipamentos de proteção individual até a impossibilidade da maior parte das populações adotar o isolamento ou o distanciamento social, únicos remédios existentes, desde a absurda mercantilização do direito à saúde, até as cruéis decisões de reabrir a economia sem nem mesmo ter-se atingido o pico do contágio. Como, entretanto, o paradigma econômico vigente um dia morrerá e sobrevirá um tempo de mais solidariedade, em que será possível voltarmos a fazer planos para o futuro, é vital começarmos a discutir a retomada do planejamento governamental.

Entendido aqui como processo tecnopolítico necessário e orientado para uma maior e melhor capacidade de governar, o planejamento não deve ser visto como panaceia, mas como parte da solução. Em outras palavras: não se deve falar de planejamento como algo utópico (embora planejamento se refira também, necessariamente, a utopias), mas, sim, como função precípua e indelegável do Estado, função governamental cada vez mais necessária no mundo contemporâneo, ainda mais em seu contexto pandêmico e pós-pandêmico.

Nesta perspectiva, planejamento não é plano, é política! Planejamento é um processo cotidiano e dinâmico de condução do governo; não se confunde com documentos, livros e planos, ainda que estes, se bem elaborados, ajudem como parte necessária ao registro documental, bem como na comunicação interna e externa ao governo etc. Antes de tudo, planejamento é a arte da boa política. Desta forma, tendo como alvo o desenvolvimento nacional, com liderança do governo e significativa participação da sociedade, é possível sugerir cinco dimensões estruturantes e concretas a conformar o espaço e o papel do planejamento estratégico governamental.  São elas:

1. Centralidade Política: significa que, dos mais altos escalões políticos e instância formais da República brasileira, dependerá qualquer iniciativa de planejamento. Os próprios altos dirigentes, por sua vez, deverão estar referendados pela participação e deliberação da sociedade.

Qualquer iniciativa de planejamento desenvolvida à margem dessa condição, porquanto exigida constitucionalmente, estará inevitavelmente fadada ao fracasso. É essencial elevar ao máximo grau possível o compromisso político com a função planejadora, algo que depende diretamente da visão de mundo, da ética da responsabilidade e da postura político-institucional ativa de altos dirigentes públicos e demais lideranças políticas da sociedade.

2. Articulação e Coordenação Institucional: grande parte das novas funções que qualquer atividade ou iniciativa de planejamento governamental deve assumir está ligada, de um lado, a um esforço grande e muito complexo de articulação institucional e, de outro lado, a outro esforço igualmente grande – mas possível – de coordenação geral das ações de governo.

O trabalho de articulação institucional é necessariamente complexo porque, em qualquer caso, deve envolver muitos atores, cada qual com seu pacote de interesses diversos e com recursos diferenciados de poder, de modo que grande parte das chances de sucesso do planejamento governamental hoje depende, na verdade, da capacidade que políticos e gestores públicos tenham de realizar a contento este esforço de articulação institucional em diversos níveis. Por sua vez, exige-se em paralelo um trabalho igualmente grande e complexo de coordenação geral das ações e iniciativas de planejamento, mas que, neste caso, porquanto não desprezível em termos de esforço e dedicação institucional, é algo que soa factível ao Estado realizar.

3. Temporalidade e Direcionalidade Estratégica: o planejamento do desenvolvimento nacional é, por natureza, uma atividade de curto, médio e longo prazo. Ademais, é atividade de natureza contínua, coletiva e cumulativa; é processo incremental dinâmico, sistêmico e abrangente; requer abordagens multi, inter e transdisciplinares, temporalidades de formulação e execução variadas e direcionalidade tecnopolítica estratégica. 

É preciso, portanto, permitir que o Plano Plurianual (PPA), ou qualquer outro instrumento formal de planejamento que o substitua, se organize e opere segundo níveis diferentes de temporalidade e de direcionalidade estratégica, única forma de combinar flexibilidade (decisória, alocativa etc.) com efetividade da ação governamental nas distintas fases de maturação e de priorização das políticas públicas.

4. Planejamento Democrático: hoje, qualquer iniciativa ou atividade de planejamento governamental que se pretenda eficaz, precisa aceitar – e mesmo contar com – certo nível de engajamento público dos atores diretamente envolvidos com a questão, sejam estes da burocracia estatal, políticos e acadêmicos, sejam os próprios beneficiários da ação que se pretende realizar. Em outras palavras, a atividade de planejamento deve prever uma dose não desprezível de horizontalismo em sua concepção e organização, vale dizer, participação direta e envolvimento prático de – sempre que possível – todos os atores pertencentes à arena em questão.

5. Entregas Efetivas à Sociedade: é preciso que a implementação, a gestão das políticas públicas e a entrega efetiva de bens e serviços do Estado à população sejam os verdadeiros critérios de aferição e perseguição do desempenho institucional (setorial, territorial e agregado) do Estado brasileiro.  Apenas desta maneira se poderá, de fato, calibrar as ações de planejamento no sentido dos resultados intermediários (medidos pela eficácia e eficiência da ação governamental) e dos resultados finais (medidos pela efetividade transformadora da ação) das políticas públicas nacionais, rumo à consolidação de um projeto de desenvolvimento integral para o Brasil no século XXI.

Considerações Finais: pandemia x planejamento.

Mesmo se a democracia brasileira não estivesse sendo posta à prova, o cenário para os próximos 20 ou 30 anos já seria suficientemente desafiador. Estamos vivendo, em âmbito global, uma série de tendências que independem da vontade isolada de países e governos nacionais, mas que afetarão a forma de inserção de todos eles e do Brasil no cenário internacional.

Desta maneira, quando falamos que o Estado é central no processo de desenvolvimento, também estamos dizendo que ele precisa se organizar e funcionar de uma maneira diferente da atual. Para tanto, existem três ideias fortes que pautam a reflexão sobre Estado, planejamento e desenvolvimento: i) uma reforma de natureza republicana, que traga mais transparência aos processos decisórios, no trato da coisa pública de modo geral; ii) o fortalecimento da democracia para que, além da manifestação eleitoral periódica, a vontade da população se manifeste de modo mais intenso e cotidiano; e iii) o retorno do desenvolvimento integral como carro-chefe da ação do Estado-Sociedade.

Nesse sentido, fortalecer as dimensões do planejamento, da prospecção, da gestão pública, da participação e do controle social – estratégias essas de organização e funcionamento do Estado – é fundamental para que possamos dar um salto de qualidade ainda no século XXI no Brasil. Portanto, que Celso Furtado, do panteão onde hoje habita, possa iluminar corações e mentes rumo às mudanças que a atual quadra histórica de desenvolvimento exige de seus povos e países.

Agora revelada, torna-se imperativo cuidar de deslocar a alienação e a resignação impostas pela teoria ruim e por práticas nefastas de política econômica, substituindo-as pela indignação propositiva com a qual se reconstroem as sociedades.

[1]              Doutor em Economia pelo IE-Unicamp. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA. As opiniões, erros e omissões são responsabilidade dos autores.

[2]              Economista e mestre em economia pela PUC-SP. Trabalhou e ministrou cursos sobre o mercado financeiro. Foi membro dos Jornalistas Livres. Escreve para a mídia independente em veículos como a Carta Maior. É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia.

[3]          Disponível em https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/03/18/nos-temos-e-que-desconstruir-muita-coisa-diz-bolsonaro-durante-jantar.ghtml

Referências Bibliográficas

CARDOSO JR., J. C. Planejamento Governamental para Céticos: evidências históricas e teóricas no Brasil. São Paulo: Ed. Quanta, 2020.

FURTADO, C. A Fantasia Desfeita. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1989. FRIEDMAN, M. Capitalismo e Liberdade. São Paulo: Nova Cultural, 1985.


[1]              Disponível em https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/03/18/nos-temos-e-que-desconstruir-muita-coisa-diz-bolsonaro-durante-jantar.ghtml

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