Um olhar sobre nossa parceria com a China

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O que mais chama a atenção é a relação comercial entre nosso país e a China. Há, contudo, outras dimensões da relação entre os dois países tão ou mais importantes do que o gigantesco saldo comercial construído no ano de 2023. Abordemos, primeiro, o exemplo que o modelo econômico chinês tem nos oferecido. Em seguida, foquemos na atuação geopolítica para, então, entrarmos nas questões de investimento e comércio.

Por César Locatelli

A soberania sobre sua economia chinesa

Nos anos 1980, a China, diferentemente de outras nações periféricas, não foi seduzida a abraçar o receituário do Consenso de Washington, fortemente encorajado pelos países centrais e, mesmo, instituído como condição prévia indispensável para obtenção de crédito do FMI e do Banco Mundial. Priorizando seu interesse nacional, a China seguiu um caminho alternativo: não liberou preços de uma só tacada, não privatizou desmedidamente, não liberou instantaneamente o comércio exterior e os fluxos de capitais, não lançou mão de austeridade fiscal e monetária para supostamente controlar a inflação e inibir eventuais déficits públicos etc.

Para se ter uma ideia dos resultados, é interessante comparar a caminho chinês com o de uma economia que seguiu rigorosamente a cartilha promovida pelos países centrais e pelas instituições internacionais de financiamento. A produção nacional russa, em 1990, representava perto de 4% do produto mundial e caiu para 2% em 2017. A China recusou-se a adotar a terapia de choque ou, como sugere Isabella Weber, não destruiu sua economia de comando na esperança de que dali surgisse, automaticamente, uma economia de mercado. Sua participação relativa sextuplicou no mesmo período: saiu de 2,2% para 12,5% do produto mundial.

O Brasil, cuja produção industrial havia se multiplicado por 15,2 entre 1948 e 1980, constrangido pela enorme dívida externa então existente, mas também por espontânea concordância da maior parte de sua liderança, política e econômica, trilhou o caminho da abertura, das privatizações, da austeridade. Nas décadas que perdemos o passo, assistimos a China se distanciar em crescimento e absorção e desenvolvimento de tecnologia. O modelo chinês só é aplicável à China, mas é de grande valor seu exemplo de tomar o interesse do próprio país para, soberanamente, orientar a atuação do Estado.

O empenho chinês pela multipolaridade

Do ponto de vista político, a defesa chinesa por um mundo multipolar é, possivelmente, o ponto de maior relevância em seus discursos, mas também em seus atos, especialmente, referentes ao Brics, grupo de dez países cuja soma dos PIBs, tomados em paridade do poder de compra, supera a dos sete maiores países industrializados (G7). Xi Jinping, na última reunião do grupo, orientou sua fala pelo princípio: “a mudança é a natureza do universo”. O hegemonismo, as guerras e os privilégios de alguns poucos países, salientou ele, estão em contraposição ao caminho desejado, e já em marcha, para a multipolaridade, a cooperação e uma ordem internacional mais justa e equitativa.

Em clara referência aos Estados Unidos, Xi Jinping afirmou que, embora cada país lute para a melhoria da vida de seu povo, existe “um país, obcecado por manter sua hegemonia, tem feito de tudo para paralisar os mercados emergentes e os países em desenvolvimento. Quem se desenvolve rapidamente torna-se alvo a ser contido; quem se aproxima dos países mais desenvolvidos torna-se alvo de obstrução”.

A libertação nacional dos países periféricos, antes submetidos à dominação colonial, não os livrou dos cinco monopólios que rendem gordos lucros aos países centrais: (i) no âmbito da tecnologia, (ii) no controle dos fluxos financeiros de envergadura mundial, (iii) no acesso aos recursos naturais do planeta, (iv) nos campos da comunicação e da mídia e (v) na esfera dos armamentos de destruição em massa. Tais poderes de mercado conferidos aos países ricos “produzem uma nova hierarquia na repartição da renda em escala mundial, mais desigual que nunca, subalternizam as indústrias da periferia e as reduzem ao estatuto de atividades terceirizadas”, sublinha Samir Amin.

O comércio e o investimento chinês com o Brasil

A China, no ano de 2023, foi o destino de US$ 105.751 bilhões, ou 31,1%do valor exportado pelo Brasil. Foi a principal compradora de soja em grãos, carnes, açúcar, cereais/farinhas e celulose. O saldo do comércio exterior brasileiro com a China, no ano de 2023, ficou próximo dos US$ 54 bilhões. Em termos de volumes, 30% do total exportado pelo Brasil foram direcionados à China.

Nos alimentos, a China ocupa atualmente a posição de maior produtor mundial, além de possuir as maiores reservas mundiais. A segurança alimentar está entre as prioridades máximas do governo chinês, o que sublinha a importância das relações com o Brasil, principalmente em tempos de acirramento das tensões com os Estados Unidos. A ampliação nas vendas dos produtos agropecuários , em relação a 2022, se deu em função do aumento do volume exportado da soja em grãos e do milho. Do total do milho importado pela China, 40% têm origem brasileira contra 29% originados nos Estados Unidos.

Como evidenciado pelo professor Márcio Pochmann, presidente do IBGE, o saldo da balança comercial brasileira de 2023, de US$ 98,8 bilhões, evidencia a força do modelo primário-exportador adotado pelo país. Em contrapartida, projeção da Associação Nacional do Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA) é de que 420 mil veículos produzidos no Brasil foram vendidos aos vizinhos da América Latina. Esse volume representa 58% do pico registrado em 2005 e consolida a China como principal exportadora de veículos para a região.

O “descuido” brasileiro com a indústria, ou o projeto mesmo de voltarmos ao padrão de exportadores de bens primários, deve ser encarado menos como uma contradição nas relações com a China e sim como uma decisão explícita dos líderes políticos e econômicos do país. A redução na oferta de postos de trabalho de qualidade deve-se em grande medida à enorme concentração de renda causada por esse modelo. A divulgação, prevista para 18 de janeiro próximo, de “uma nova política industrial brasileira” pode representar uma reversão na tendência de desindustrialização que nos acompanha há décadas.

No tocante a investimentos, os dados demonstram que, entre 2007 e 2020, 176 projetos, somando US$ 66 bilhões, foram desenvolvidos por empresas chinesas no Brasil, que recebeu metade dos investimento chineses na América Latina. A maior parte destes investimentos foi canalizada para o setor de energia, seguido por mineração, manufatura, agricultura e serviços financeiros, sendo liderada por empresas estatais chinesas. China e Estados Unidos têm se revesado entre o primeiro e o segundo posto de maiores investidores diretos no Brasil.

Além da inauguração de um laboratório em Campinas para estudar o ciclo completo da produção de módulos fotovoltaicos, a chinesa BYD, que já fabrica ônibus elétricos e placas solares no Brasil, planeja ampliar seu parque no país e fazer um investimento de R$ 3 bilhões para produzir carros elétricos e híbridos.

Em resumo

Se nosso objetivo central é transformar as relações mundiais de poder, é eliminar os privilégios decorrentes da unipolaridade e estabelecermos um mundo multipolar com democracia econômica, não há como não reconhecer o papel inescapável da parceria com a China, mas também com os Brics. Não há dúvidas de que a China é, econômica e tecnologicamente, a principal potência dos Brics. Mas, não se pode esquecer que somos uma potência na produção de alimentos, de que a Rússia é uma potência militar, que a Índia vem trilhando um caminho de progresso intenso, que o grupo dos Brics ampliado é uma potência energética e que compomos quase metade da população mundial. Em resumo, precisamos da parceria com a China e, da mesma forma, somos parceiros essenciais ao futuro chinês.

Publicado originalmente em Jornal GGN.

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