Textos Clássicos: A formação do economista em país subdesenvolvido, por Celso Furtado

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Celso Furtado. Fonte: Senado Federal.

Convergem sobre os economistas, de todos os lados, os chamados mais urgentes. O desenvolvimento econômico, qualificado como o problema do século, é matéria de sua especialidade. As desigualdades entre níveis de vida de grupos populacionais, e as disparidades entre ritmos de crescimento de sistemas econômicos, também são matérias da competência do economista. Os grandes desequilíbrios causadores de tensões político-sociais, sejam aqueles decorrentes de desajustamentos entre a poupança e a inversão, entre a oferta de bens de consumo e o desejo dos consumidores de exercer o seu poder de compra, entre a capacidade de pagar no exterior e a propensão para importar, entre o que a coletividade solicita do governo e a capacidade de pagamento desse governo, entre o desejo de desenvolver-se economicamente e a ansiedade de gastar de imediato o disponível, sejam aqueles de caráter mais social, como os causados pelo contraste entre os desperdícios visíveis e as necessidades gritantes não satisfeitas, enfim, os desequilíbrios que estão na raiz dos grandes problemas de nossa época são de natureza econômica ou têm uma importante dimensão econômica.

No ponto de convergência desse mare magnum de problemas, traduzidos todos em linguagem de urgência, referidos a uma realidade em rápida mutação que não pode ser fixada senão quando já deixou de ser para transformar-se em estatísticas, no centro de tudo isso está o economista. Estará ele preparado para responder a esse desafio?

O jovem aplicado e inteligente que criteriosamente fez o seu curso de economia, entre nós, terá conseguido um razoável conhecimento das múltiplas dependências dessa mansão senhorial que é a teoria dos preços. Estará em condições de traçar caprichosas famílias de curvas de indiferença e de discutir sobre a teoria do comportamento de consumidor e do equilíbrio da firma em níveis distintos de complexidade. Terá dado muitas voltas em torno das teorias monetárias e muito esforço terá feito para descobrir as linhas de parentesco entre essas teorias e o corpo central das teorias econômicas. Conhecerá muitas doutrinas sobre o ciclo econômico, se bem que, no íntimo, esteja convencido de que elas todas dizem mais ou menos a mesma coisa, ou não dizem nada. Haverá construído alguns esquemas abstratos para determinar o ponto de equilíbrio das balanças de pagamentos. Terá avançado algo pelos caminhos imprevistos do modelo keynesiano e talvez saiba combinar com elegância o multiplicador e o acelerador. Finalmente, haverá lido, assistematicamente, muita coisa sobre “desenvolvimento econômico”, se bem que não tenha encontrado conexão clara dessas leituras com as boas teorias aprendidas nos compêndios.

Ao enfrentar-se com o mundo real, esse economista sente-se, para surpresa sua, extremamente frustrado. Indo trabalhar numa empresa privada, logo perceberá que a análise marginal está destituída de qualquer alcance prático. Em pouco tempo, terá percebido que é muito mais importante compreender as limitações de natureza administrativa e as controvérsias de tipo fiscal que emaranham a vida de uma empresa do que conhecer os mais sutis caprichos da posição de equilíbrio de uma firma teórica. Para fazer um bom estudo de mercado, necessita-se muito mais saber trabalhar com a imaginação à base de dados e informações indiretas do que de refinadas técnicas de análise.

A desorientação será bem maior ainda, entretanto, se o economista for convocado para trabalhar no setor público. Neste caso, perceberá, em pouco tempo, que se tudo que aprendeu não é totalmente inútil, quase tudo que é realmente útil ele deixou de aprender. Surge, então, o problema da pós-graduação. A situação será remediável se o economista houver recebido uma base adequada, que o capacite para complementar, mediante esforço próprio, a sua formação. Está aqui a chave de nosso problema.

Para que possa retificar e complementar a sua formação e desenvolver-se com base na própria experiência, o economista deve ter uma ideia clara do que é a economia como ciência. Deve saber que toda ciência trabalha com esquemas conceituais, mas elabora e testa esses esquemas com base na observação do mundo objetivo. Assim, o fundamental na formação do economista é que nele se haja desenvolvido a aptidão para observar de forma sistemática o mundo objetivo. Não devemos esquecer que a observação disciplinada da realidade objetiva é muito mais difícil em economia que na maioria das outras ciências, dadas a grande complexidade e a permanente mutação dessa realidade mesma. Como é impraticável captá-la em toda a sua complexidade, torna-se indispensável destacar ou abstrair aquilo que a realidade econômica tem de mais permanente, ou que nela é mais representativo. Observar o mundo real é, para o economista, de alguma forma, saber esquematizá-lo ou simplificá-lo. Em outras palavras, é saber reduzir o comportamento dos fenômenos reais à interação de um número de variáveis suficientemente pequeno para que possamos integrá-las em um esquema conceitual. Quanto maior a simplificação, menor o número de variáveis, e quanto menor o número de variáveis, mais fácil será integrá-las em um esquema. Dessa forma, toda teoria de elevado rigor, em economia, corresponde a uma realidade extremamente abstrata, ou grandemente simplificada. Em matéria de comércio internacional, por exemplo, a teoria mais rigorosa é aquela que se refere a um mundo formado por dois países e a um intercâmbio em que entram apenas dois produtos etc.

Ora, a grande dificuldade que enfrenta o estudante de economia, em um país subdesenvolvido, é que as teorias que lhe são ensinadas são exatamente aquelas que se baseiam em observações feitas mediante extrema simplificação de um mundo real que, demais, do ponto de vista estrutural é fundamentalmente distinto daquele em que ele vive. Essas simplificações do mundo real são, muitas vezes, ditadas pela mera conveniência do uso de certas técnicas de análise. Não devemos esquecer que quem analisa a realidade adota uma técnica de análise, técnica essa que preexiste à escolha do objeto analisado. E, uma vez adotada determinada técnica, ou método, é comum em economia que a própria técnica, emprestada de outra ciência, passe a condicionar a marcha do esforço da teorização. É de todos conhecida a influência esmagadora que o cálculo infinitesimal exerceu sobre os economistas marginalistas, cujos modelos de firma padrão, de consumidor típico, de equilíbrio parcial etc., chegaram a afastar-se distâncias quilométricas da realidade a fim de que o trabalho de teorização pudesse avançar dentro dos caminhos abertos pela análise diferencial e integral.

Mas não somente o predomínio de certas técnicas sofisticadas de análise tem contribuído para alienar o nosso economista do mundo real. A maneira mesma como se apresentam as teorias econômicas nas faculdades vem contribuindo para a alienação do estudante. A forma verdadeira de ensinar uma ciência consiste em apresentar os seus quadros conceituais como sistemas de hipóteses, cuja eficácia explicativa deve ser testada com respeito a uma determinada realidade. Esse teste, entretanto, raramente é feito no ensino de economia, entre nós. Quando muito, procura-se demonstrar a consistência lógica interna do sistema de hipóteses, partindo de um conjunto de definições; mas raramente se aborda o problema de sua eficácia explicativa com respeito a uma determinada realidade empírica. Em outras palavras, raramente se passa do campo da doutrina para o da teoria científica.

Não se creia, entretanto, que seria tarefa fácil dar esse passo decisivo do campo das doutrinas (cujo teste se realiza no terreno da lógica) para o das autênticas teorias científicas (cujo teste reside em sua eficácia explicativa) em um país subdesenvolvido. A doutrina refere-se a um protótipo ideal, criado em nosso espírito, ao passo que uma teoria científica diz respeito a um dado mundo real. O que tem ocorrido em economia é que uma teoria, formulada para explicar determinada realidade com limites no tempo e no espaço, é correntemente transformada em doutrina de validez universal. Assim, uma teoria formulada para explicar o comportamento da balança de pagamentos de um país como os Estados Unidos, quando universalizada, transforma-se em mera doutrina, que pode servir para justificar determinadas políticas, mas não para explicar indiscriminadamente a realidade de um país qualquer.

As teorias econômicas falecem, assim, de uma dupla debilidade. A primeira deriva de que as hipóteses explicativas são formuladas com respeito ao comportamento de modelos demasiadamente simplificados, o que em grande parte se deve à aplicação de técnicas de análise elaboradas para outro tipo de trabalho científico. Essa primeira falha é de natureza universal e vem sendo superada através de um grande esforço feito para melhorar a base de observação empírica, graças à acumulação de informações estatísticas e outras, e também no sentido do desenvolvimento autônomo de técnicas de análise, inclusive no campo matemático.

A segunda debilidade, específica da economia ensinada em nosso país, tem sua raiz em que as teorias correntes, em sua generalidade, foram formuladas para explicar o comportamento de estruturas distintas da nossa. As diferenças entre as estruturas desenvolvidas e subdesenvolvidas parecem ser suficientemente grandes para retirar parte substancial da eficácia explicativa de muitas das teorias econômicas de maior aceitação. Ora, como ainda não existe um corpo de teorias, ou de variantes teóricas, elaboradas diretamente para explicar o comportamento de uma economia subdesenvolvida, semi-industrializada, com insuficiência crônica de capacidade para importar, com excedente estrutural de mão de obra em todas as direções, como é a nossa, não é de admirar que o estudante de economia saia de sua escola e comece a enfrentar o mundo real com mais dúvidas e perplexidades do que outra coisa.

Em face da escassez de teorias econômicas de aplicação viável nas estruturas subdesenvolvidas, considero que, na formação do economista, deve-se dar prioridade ao domínio das técnicas que capacitam para observar, de forma sistemática, a realidade econômica. Saber observar metodicamente o mundo real, isto é, saber retirar da realidade, com os meios disponíveis, os elementos necessários à representação da mesma em termos econômicos é mais importante do que um refinado conhecimento dos mais sutis modelos estocásticos. Em segundo lugar, em razão do caráter histórico dos fenômenos econômicos, devemos ter sempre em conta que a validez de uma teoria é muito mais limitada, em economia, do que em outras disciplinas científicas. Em ciência, poder explicar significa estar armado para prever. Em economia, explica-se dez para poder prever um, e o que se logra prever é sempre o mais geral, isto é, aquilo que é comum a uma multiplicidade de fenômenos e, portanto, tem um caráter histórico limitado. Em outras palavras: aquilo que é mais específico de uma determinada realidade é o que mais dificilmente pode ser previsto. À medida que o econômico se esvazia de seu conteúdo histórico e mais se aproxima de um protótipo abstrato, mais pode ser previsto. Seria, entretanto, ingênuo atribuir excessiva importância a essa previsão que se refere a uma realidade esvaziada de seus ingredientes mais específicos.

O economista que possua uma base metodológica sólida, e clara compreensão do método científico em geral, tende a ser quase necessariamente, entre nós, heterodoxo. Em pouco tempo, ele aprenderá que os caminhos trilhados lhe são de pouca valia. Logo perceberá que a imaginação é um instrumento de trabalho poderoso e que deve ser cultivada. Perderá em pouco tempo a reverência diante do que está estabelecido e compendiado. Na medida em que venha a pensar por conta própria, com independência, reconquistará a autoconfiança, perderá a perplexidade.


Capítulo 7 de A prérevolução brasileira. Recife: Ed. Universitária UFPE2009. (Primeira edição: 1962.)

Publicado também em: FURTADO, Celso. Essencial Celso Furtado. Editora Companhia das Letras, 2013.

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