Textos Clássicos: Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda – Capítulo 24 Notas Finais Sobre a Filosofia Social a que Poderia Levar a Teoria Geral, por John Maynard Keynes

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I

Os principais defeitos da sociedade econômica em que vivemos são a sua incapacidade para proporcionar o pleno emprego e a sua arbitrária e desigual distribuição da riqueza e das rendas. A relação da teoria anteriormente exposta com o primeiro defeito é óbvia. Mas há também dois pontos importantes em que ela é relevante para o segundo.

Desde o fim do século XIX, a tributação direta — imposto sobre a renda e sobretaxas, e impostos sobre as heranças — vem conseguindo realizar, especialmente na Grã-Bretanha, considerável progresso na diminuição das grandes desigualdades de riqueza e de renda. Muitos desejariam que este processo fosse levado bem mais adiante, mas veem-se impedidos por duas considerações; em parte, pelo receio de tornar as evasões bem urdidas demasiado vantajosas e, também, pelo de enfraquecer excessivamente o incentivo de correr riscos; porém o que, na minha opinião, sobretudo os detém é a ideia de que o aumento do capital depende do vigor dos motivos que impelem à poupança, e de que uma grande proporção desse crescimento depende das poupanças dos ricos a partir do que lhes é supérfluo. Nossa argumentação não afeta a primeira destas considerações. Mas pode modificar consideravelmente o nosso ponto de vista sobre a segunda, pois já vimos que, dentro dos limites da existência do pleno emprego, o crescimento do capital não depende absolutamente de uma baixa propensão a consumir, mas é, ao contrário, reprimido pela mesma, e que apenas em condições de pleno emprego pode uma baixa propensão a consumir levar ao crescimento do capital. Ademais, a experiência ensina que, nas condições existentes, a poupança por meio de instituições e de fundos de amortização é mais que adequada, e que as medidas destinadas a redistribuir a renda no sentido de aumentar a propensão a consumir podem ser muito favoráveis ao crescimento do capital.

A crença tão generalizada de que os impostos sobre heranças são responsáveis pela redução da riqueza de capital de um país reflete a confusão que reina entre o público neste aspecto. Supondo que o Estado aplique o produto destes impostos em suas despesas comuns, de modo que os impostos sobre a renda e o consumo se reduzam ou anulem correspondentemente, é naturalmente inegável que uma política fiscal de altos impostos sobre heranças faz aumentar a propensão da comunidade a consumir. Mas, como um aumento da propensão habitual a consumir contribui, em geral (isto é, excetuando as condições de pleno emprego), para elevar o incentivo ao investimento, a conclusão que daí se tira é quase sempre oposta à verdade.

O nosso raciocínio leva-nos, desse modo, à conclusão de que, nas condições contemporâneas, a abstinência dos ricos mais provavelmente tolhe do que favorece o crescimento da riqueza. Fica assim invalidada uma das principais justificativas sociais da grande desigualdade da riqueza. Não quero dizer que haja outras razões, independentes da nossa teoria, capazes de justificar certa desigualdade em determinadas circunstâncias, porém nossa tese elimina certamente a razão mais importante que até agora vem sendo o motivo de pensarmos na conveniência de agir com moderação. Isto afeta particularmente nosso modo de encarar os impostos sobre heranças, pois há certas justificativas da desigualdade das rendas que não podem aplicar-se à desigualdade das heranças.

Do meu ponto de vista, creio haver justificativa social e psicológica para grandes desigualdades nas rendas e na riqueza, embora não para as grandes disparidades existentes na atualidade. Existem valiosas atividades humanas que requerem o motivo do lucro e a atmosfera da propriedade privada de riqueza para que possam dar os seus frutos. Além disso, a possibilidade de ganhar dinheiro e fazer fortuna pode orientar certas inclinações perigosas da natureza humana para caminhos onde elas se tornem relativamente inofensivas e, não sendo satisfeitas desse modo, possam elas buscar uma saída na crueldade, na desenfreada ambição de poder e de autoridade e ainda em outras formas de engrandecimento pessoal. É preferível que alguém tiranize seu saldo no banco do que os seus concidadãos e, embora o primeiro caso seja algumas vezes um meio de levar ao segundo, em certos casos é pelo menos uma alternativa. Todavia, não é necessário, para estimular essas atividades e satisfazer essas inclinações, que o jogo seja feito com apostas tão altas como agora. Apostas menores levariam igualmente ao mesmo resultado, desde que os jogadores se habituassem a elas. A tarefa de modificar a natureza humana não deve ser confundida com a de administrá-la. Embora na comunidade ideal os homens possam ser acostumados, inspirados ou ensinados a desinteressar-se do jogo a sabedoria e a prudência da arte política devem permitir a prática do jogo, embora sob certas regras e limitações, em se considerando que o homem comum, ou mesmo uma fração importante da comunidade, é altamente inclinado à paixão pelo lucro.

II

Há, contudo, um segundo aspecto do nosso argumento cujas consequências são muito mais importantes para o futuro das desigualdades de riqueza, a saber, a nossa teoria da taxa de juros. A justificativa de uma taxa de juros moderadamente elevada foi encontrada, até aqui, na necessidade de proporcionar estímulo suficiente à poupança. Demonstramos, porém, que a extensão da poupança efetiva é rigorosamente determinada pelo montante de investimento, e que este montante cresce por efeito de uma taxa de juros baixa, desde que não tentemos levá-lo por esse caminho além do nível que corresponde ao pleno emprego. Assim sendo, o que mais nos convém é reduzir a taxa de juros até o nível em que, em relação à curva da eficiência marginal do capital, se realize o pleno emprego.

Não pode haver dúvida de que este critério servirá para fazer baixar a taxa de juros muito além do nível que até agora tem vigorado; e, à medida que se possam estimar os valores da eficiência marginal do capital que correspondem a quantidades crescentes de volumes de capital, é possível que a taxa de juros caia uniformemente, caso seja exequível manter as condições mais ou menos contínuas de pleno emprego — salvo, naturalmente, se houver uma modificação considerável na propensão agregada a consumir (incluindo o Estado).

Estou convencido de que a procura de capital é estritamente limitada, no sentido de que não seria difícil aumentar o estoque de capital até que sua eficiência marginal atinja uma cifra muito baixa. Não quer isto dizer que o uso dos bens de capital passe a custar quase nada, mas apenas que a sua retribuição cubra um pouco mais do que a depreciação devida ao desgaste e à obsolescência, ao mesmo tempo que deixe uma certa margem destinada a compensar os riscos e o exercício da habilidade e do julgamento. Em resumo, o rendimento agregado dos bens duráveis durante toda a sua vida cobriria justamente, como no caso dos bens de curta duração, o custo de trabalho necessário para os produzir, mais uma margem correspondente ao risco e ao custo da habilidade e da supervisão.

Ora, embora este estado de coisas seja perfeitamente compatível com certo grau de individualismo, ainda assim levaria à eutanásia do rentier e, consequentemente, à eutanásia do poder cumulativo de opressão do capitalista em explorar o valor de escassez do capital. A taxa de juros atual não compensa nenhum verdadeiro sacrifício, do mesmo modo que não o faz a renda da terra. O detentor do capital pode conseguir juros porque o capital é escasso, assim como o dono da terra pode obter uma renda porque a terra é escassa. Mas, enquanto houver razões intrínsecas para a escassez da terra, não há razões intrínsecas para a escassez do capital. Uma razão intrínseca para semelhante escassez, no sentido de um verdadeiro sacrifício que só a oferta de uma recompensa em forma de juros fizesse surgir, não poderia existir de maneira durável, a menos que a propensão individual a consumir fosse de tal natureza que a poupança líquida, em situação de pleno emprego, deixasse de existir antes de o capital chegar a ser suficientemente abundante. Mesmo assim, o Estado ainda teria o recurso de manter uma poupança agregada a um nível que permitisse o crescimento do capital até que sua escassez desaparecesse.

Conseqüentemente, eu considero o aspecto do rentier do capitalismo como sendo uma fase transitória, que desaparecerá logo que tenha desempenhado sua função. E com o desaparecimento deste aspecto muitas outras transformações deverão ocorrer. Além disso, uma grande vantagem na ordem dos acontecimentos que preconizo consiste em que a eutanásia do rentier, do investidor sem função, nada terá de repentino, mas será meramente uma continuação gradual e prolongada do que vimos observando recentemente na Grã-Bretanha, sem carecer de qualquer revolução.

Na prática, portanto, o nosso objetivo deveria ser conseguir (e isto nada tem de irrealizável) um aumento no volume de capital até que ele deixe de ser escasso, de modo que o investidor sem função deixe de receber qualquer benefício, e depois criar um sistema de tributação direta que permita a inteligência, a determinação, a habilidade executiva do financista, do empresário et hoc genus omne (certamente tão orgulhosos de suas funções que poderia obter-se o seu trabalho muito mais barato que agora) a dedicar-se ativamente à comunidade em condições razoáveis de remuneração.

Ao mesmo tempo temos de reconhecer que só a experiência pode mostrar até que ponto convém orientar a vontade popular, incorporada na política do Estado, no sentido de aumentar e suplementar o incentivo a investir, e até que ponto convém estimular a propensão média a consumir, sem abandonar o nosso objetivo de privar o capital de seu valor de escassez em uma ou duas gerações. Pode acontecer que a propensão a consumir se fortaleça sem maiores dificuldades por efeito de uma taxa de juros decrescente, de tal modo que o pleno emprego se alcance com um fluxo de acumulação pouco maior que o atual. Nesse caso, um plano para cobrar impostos mais elevados das grandes rendas e heranças poderia ter o inconveniente de conduzir ao pleno emprego com uma taxa de acumulação bastante inferior ao nível corrente. Não se deve imaginar que nego a possibilidade ou mesmo a probabilidade deste resultado, pois, em assuntos desta natureza, seria temerário prever como reagiria o homem médio em face de uma mudança de método. Contudo, se fosse fácil conseguir uma aproximação do pleno emprego com uma taxa de acumulação não muito maior que a presente, pelo menos ter-se-ia resolvido um problema de máxima importância. Ficaria para decidir, em separado, em que proporção e por que meios seria justo e razoável invocar a geração atual a reduzir seu consumo, para que os seus descendentes possam gozar, no devido tempo, de um estado de pleno investimento.

III

As implicações da teoria exposta nas páginas precedentes são, a outros respeitos, razoavelmente conservadoras. Embora essa teoria indique ser de importância vital o estabelecimento de certos controles sobre atividades que hoje são confiadas, em sua maioria, à iniciativa privada, há muitas outras áreas que permanecem sem interferência. O Estado deverá exercer uma influência orientadora sobre a propensão a consumir, em parte através de seu sistema de tributação, em parte por meio da fixação da taxa de juros e, em parte, talvez, recorrendo a outras medidas. Por outro lado, parece improvável que a influência da política bancária sobre a taxa de juros seja suficiente por si mesma para determinar um volume de investimento ótimo. Eu entendo, portanto, que uma socialização algo ampla dos investimentos será o único meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego, embora isso não implique a necessidade de excluir ajustes e fórmulas de toda a espécie que permitam ao Estado cooperar com a iniciativa privada. Mas, fora disso, não se vê nenhuma razão evidente que justifique um socialismo do Estado abrangendo a maior parte da vida econômica da nação. Não é a propriedade dos meios de produção que convém ao Estado assumir. Se o Estado for capaz de determinar o montante agregado dos recursos destinados a aumentar esses meios e a taxa básica de remuneração aos seus detentores, terá realizado o que lhe compete. Ademais, as medidas necessárias de socialização podem ser introduzidas gradualmente sem afetar as tradições generalizadas da sociedade.

Nossa crítica à teoria econômica clássica geralmente aceita consistiu menos em revelar os defeitos lógicos de sua análise do que em assinalar o fato de que as suas hipóteses tácitas nunca ou quase nunca são satisfeitas, com a consequência de que ela se mostra incapaz de resolver os problemas econômicos do mundo real. Entretanto, se os nossos controles centrais lograrem estabelecer um volume de produção agregado correspondente o mais aproximadamente possível ao pleno emprego, a teoria clássica retomará, daí em diante, a sua devida posição. Se considerarmos dado o volume da produção, isto é, se o supusermos determinado por forças alheias à concepção da escola clássica, nada há a opor à análise clássica concernente à maneira como o interesse pessoal determinará o que se produz especificamente, em que proporção se associarão os fatores para tal fim e como se distribuirá entre eles o valor da produção obtida. Para reiterar a nossa opinião, o fato de termos tratado de maneira diferente do problema da parcimônia não significa que haja algo a objetar à teoria clássica moderna quanto ao grau de conciliação entre as vantagens públicas e particulares, tanto em regime de concorrência perfeita quanto em regime de concorrência imperfeita. Assim sendo, fora a necessidade de um controle central para manter o ajuste entre a propensão a consumir e o estímulo para investir, não há mais razão do que antes para socializar a vida econômica.

Para colocar a questão num plano concreto, não vejo por que o sistema existente faria mau uso dos fatores de produção utilizados. Cometem-se, naturalmente, erros de previsão, que aliás não se evitariam, centralizando as decisões. Quando sobre 10 milhões de homens desejosos e capazes de trabalhar há 9 milhões empregados, nada permite afirmar que o trabalho desses 9 milhões de homens seja mal orientado. A queixa contra o sistema presente não consiste em que esses 9 milhões deveriam ser empregados em tarefas diferentes, senão em que deveria haver trabalho disponível para o restante 1 milhão de homens. É o volume e não a direção do emprego efetivo o responsável pelo colapso do sistema atual.

Por isso concordo com Gessell em que o preenchimento das lacunas da teoria clássica não leva a abandonar o “Sistema de Manchester”, mas a indicar a natureza do meio que exige o livre jogo das forças econômicas para ser capaz de realizar toda a potencialidade da produção. Os controles centrais necessários para assegurar o pleno emprego exigirão, naturalmente, uma considerável extensão das funções tradicionais de governo. A par disso, a própria teoria clássica moderna chamou a atenção sobre as várias condições em que pode ser necessário refrear ou guiar o livre jogo das forças econômicas. Todavia, subsistirá ainda uma grande amplitude, que permita o exercício da iniciativa e responsabilidade privadas. Nesse domínio, as vantagens tradicionais do individualismo continuarão ainda sendo válidas.

Paremos um momento para recordar essas vantagens. Em parte são vantagens de eficiência — as vantagens da descentralização e do jogo do interesse pessoal. Do ponto de vista da eficiência, as vantagens da descentralização das decisões e da responsabilidade individual são talvez maiores do que julgou o século XIX, e a reação contra o atrativo do interesse pessoal talvez tenha ido demasiado longe. Porém, acima de tudo, o individualismo, se puder ser purgado de seus defeitos e abusos, é a melhor salvaguarda da liberdade pessoal, no sentido de que amplia mais do que qualquer outro sistema o campo para o exercício das escolhas pessoais. É também a melhor salvaguarda da variedade da vida, que desabrocha justamente desse extenso campo das escolhas pessoais, e cuja perda é a mais sensível de todas as que acarreta o Estado homogêneo ou totalitário. Essa variedade preserva as tradições que encerram o que de mais seguro e auspicioso reuniram as gerações passadas, dá cor ao presente com os diversos matizes de sua fantasia, e servindo a experiência, bem como a tradição e a imaginação, é o mais poderoso instrumento para conduzir à melhoria do futuro.

Por isso, enquanto a ampliação das funções do governo, que supõe a tarefa de ajustar a propensão a consumir com o incentivo para investir, poderia parecer a um publicista do século XIX ou a um financista americano contemporâneo uma terrível transgressão do individualismo, eu a defendo, ao contrário, como o único meio exequível de evitar a destruição total das instituições econômicas atuais e como condição de um bem-sucedido exercício da iniciativa individual.

Se a demanda efetiva se mostra deficiente, não só o desperdício de recursos causa no público um escândalo intolerável, como também o empreendedor individual que tenta pô-los em ação joga um jogo com cartas marcadas contra si. O jogo de que participa contém muitos zeros, de modo que os jogadores em conjunto acabarão perdendo se tiverem bastante energia e confiança para jogar todas as cartas. O crescimento da riqueza mundial tem sido menor, até agora, que o volume agregado das poupanças individuais, e a diferença corresponde às perdas sofridas por aqueles cuja coragem e iniciativa não foram suplementadas por uma habilidade excepcional ou por uma sorte fora do comum. Se a demanda efetiva for adequada, porém, serão suficientes apenas habilidade e sorte normais. Os regimes autoritários contemporâneos parecem resolver o problema do desemprego à custa da eficiência e da liberdade. É certo que o mundo não tolerará por muito mais tempo o desemprego que, à parte curtos intervalos de excitação, é uma consequência — e na minha opinião uma consequência inevitável — do capitalismo individualista do nosso tempo. Mas pode ser possível curar o mal por meio de uma análise correta do problema, preservando ao mesmo tempo a eficiência e a liberdade.

IV

Observei, de passagem, que o novo sistema poderia ser mais favorável à paz do que antigo. Vale a pena repetir e enfatizar este ponto.

A guerra tem diversas causas. Os ditadores e pessoas semelhantes, aos quais a guerra oferece, pelo menos em expectativa, uma excitação deleitável, não encontram dificuldade em fomentar a natural belicosidade de seus povos. Porém, além disso, facilitando seu trabalho de insuflar as chamas do entusiasmo do povo, aparecem as causas econômicas da guerra, ou seja, as pressões da população e a luta acirrada pelos mercados. Este segundo fator, que desempenhou no século XIX, e talvez venha a desempenhar ainda, um papel essencial, tem estreita relação com o nosso assunto.

Assinalei no capítulo anterior que, sob o regime de laissez-faire interno e de padrão de ouro internacional, como era o correto na segunda metade do século XIX, não havia qualquer outro meio disponível a um governo para aliviar a miséria econômica interna a não ser lutar pela conquista de mercados externos. Isso porque todos os remédios eficazes para o desemprego crônico ou intermitente estavam excluídos, à exceção das medidas destinadas a melhorar o balanço de pagamentos em conta corrente.

Desse modo, enquanto os economistas estavam acostumados a aplaudir o sistema internacional existente porque ele proporcionava os frutos da divisão internacional do trabalho e, ao mesmo tempo, conciliava os interesses das diferentes nações, furtava à vista uma consequência menos benéfica; e davam provas de bom senso e de uma justa compreensão do verdadeiro curso dos acontecimentos os estadistas que acreditavam que, se um país antigo e rico abandonasse a luta pelos mercados, veria sua prosperidade cair e desaparecer. Mas se as nações podem aprender a manter o pleno emprego apenas por meio de sua política interna (e também, devemos acrescentar, se logram alcançar o equilíbrio na tendência de crescimento de suas populações), não deveria mais haver a necessidade de forças econômicas importantes destinadas a predispor um país contra os seus vizinhos. Haveria o lugar para a divisão internacional do trabalho e para o crédito internacional em condições adequadas, mas deixaria de existir motivo premente para que um país necessitasse impor suas mercadorias a outro ou recusar as ofertas de seus vizinhos, não porque isto seja indispensável para capacitá-lo a pagar o que deseja adquirir no estrangeiro, mas por causa do objetivo expresso de alterar o equilíbrio de pagamentos, a fim de criar uma balança comercial que lhe seja favorável. O comércio internacional deixaria de ser o que é, um expediente desesperado para manter o emprego interno, forçando as vendas nos mercados externos e restringindo as compras, o que, se tivesse êxito, simplesmente deslocaria o problema do desemprego para o vizinho que levasse desvantagem na luta, e se converteria num livre e desimpedido intercâmbio de mercadorias e serviços em condições de vantagens mútuas.

V

Será uma esperança visionária confiar que estas ideias se concretizem? Têm elas raízes insuficientes nos motivos que governam a evolução das sociedades políticas? São os interesses a que elas se opõem mais fortes e mais manifestos do que os que favorecem?

Não me cabe responder aqui a essas perguntas. Seria necessário um livro de natureza bem diferente deste para indicar, mesmo em linhas gerais, as medidas práticas que poderiam dar corpo a tais ideias. Contudo, se as ideias são corretas — hipótese na qual o próprio autor tem de basear o que escreve —, seria um erro, segundo minha previsão, ignorar a força que com o tempo elas virão a adquirir. Presentemente, há uma expectativa incomum de um diagnóstico mais bem fundamentado; mais do que nunca todos estão prontos a aceitá-lo e desejosos de o experimentar, desde que ele seja pelo menos plausível. Mas, à parte esta disposição de espírito peculiar à época, as ideias dos economistas e dos filósofos políticos, estejam elas certas ou erradas, têm mais importância do que geralmente se percebe. De fato, o mundo é governado por pouco mais do que isso. Os homens objetivos que se julgam livres de qualquer influência intelectual são, em geral, escravos de algum economista defunto. Os insensatos, que ocupam posições de autoridade, que ouvem vozes no ar, destilam seus arrebatamentos inspirados em algum escriba acadêmico de certos anos atrás. Estou convencido de que a força dos interesses escusos se exagera muito em comparação com a firme penetração das ideias. É natural que elas não atuem de maneira imediata, mas só depois de certo intervalo; isso porque, no domínio da filosofia econômica e política, raros são os homens de mais de vinte e cinco ou trinta anos que são influenciados por teorias novas, de modo que as ideias que os funcionários públicos, os políticos e mesmo os agitadores aplicam aos acontecimentos atuais têm pouca probabilidade de ser as mais recentes. Porém, cedo ou tarde, são as ideias, e não os interesses escusos, que representam um perigo, seja para o bem ou para o mal.


Publicado originalmente em KEYNES, John Maynard. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Editora Nova Cultural Ltda., 1996. Coleção Os Economistas.

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