Anti-Financeirização contra Sistema Financeiro

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por Fernando Nogueira da Costa *

Meus companheiros de esquerda não lidam bem com os atributos do sistema financeiro. Acham possível o separar do sistema capitalista, com fosse um apêndice – parte acessória de um órgão, geralmente, sem relevância para o seu funcionamento e capaz de ser extirpado. Dada sua “inflamação”, como fosse um “setor à parte”, propõem sua extração.

Li as seguintes propostas ABED (Associação Brasileira de Economistas pela Democracia) como programa de governo sem aprofundamento da análise da viabilidade política (ser aprovadas no Congresso Nacional) e das consequências financeiras:

1. instituir o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), destinando seus recursos para cobrir despesas crescentes relacionadas ao controle da pandemia;

2. instituir Imposto sobre Lucros dos bancos;

3. utilizar os bancos públicos para assegurar linhas de crédito de capital de giro sem juros para pequenas e médias empresas, utilizando os recursos recentemente liberados dos depósitos compulsórios e, se necessário, complementá-los com outros recursos federais de origem fiscal.

Em uma economia aberta e globalizada, está comprovado em diversos países ao adotarem o IGF, ter provocado uma fuga de capitais, sem ganho fiscal compensador, inclusive por ser “once for all” (uma vez por todas) para não desestimular os investimentos. Além das empresas bancárias já pagarem relativamente mais impostos, se comparadas às de outras atividades, aumentará a chamada “cunha fiscal” no spread bancário com o repasse do maior custo aos tomadores de crédito via juros.

Não cobrar juros, como argumentarei mais adiante com o conceito de juros, é uma ideia estapafúrdia! Não tem lógica nem coerência com a ideia de sistema, um componente dele obter dinheiro sem custo ou sem dever! “Nem louco rasga dinheiro”…

Ao deparar com uma crítica à chamada “financeirização”, em geral, eu desconfio do desconhecimento de causa do crítico apressado. Ele terá consciência de todos os agentes econômicos bancarizados, praticamente quase toda a população economicamente ativa, serem participantes voluntários do sistema financeiro? Se eles sofressem uma rapina sistemática seriam clientes bancários?!

Os marxistas dizem: “os conceitos definidos por Marx suscitam a avaliação de existir autonomia relativa da esfera da circulação em relação à produção. O desenvolvimento do crédito e do capital fictício, no processo de financeirização e descolamento do lastro em trabalho, constitui exemplo dessa autonomização do capital em busca de maior lucro e menos limites”.

Na verdade, o encontro do capital-dinheiro com a força de trabalho livre para se vender por um salário caracteriza a relação de produção capitalista desde quando a acumulação primitiva se concluiu no século XVIII. Por definição, nunca o capital-dinheiro ficou ausente das decisões capitalistas.

Os donos do capital sempre levaram em conta considerações financeiras para decidir a respeito de sua inserção no processo de acumulação. Nada disso é novidade histórica, pois a alavancagem financeira da rentabilidade patrimonial com recursos de terceiros é essencial para o maior crescimento dos recursos próprios. A “financeirização” é uma nova palavra para designar um velho fenômeno socioeconômico: o crescimento das finanças com a ampliação da rede bancária e do mercado de capitais.

A novidade na história bancária brasileira foi o processo de “bancarização”, ocorrida desde a virada do século XX para o XXI. Propiciou o acesso popular a bancos e, portanto, a crédito. A gestão do dinheiro é um importante mecanismo institucional de defesa do poder aquisitivo em uma economia onde se sofre com muita volatilidade cambial e inflacionária. Encerrou a distinção entre “dinheiro de pobre” (desindexado) e “dinheiro de rico” (indexado), imposta aos “sem conta” (bancária) entre 1964 e 2002.

Seus críticos atribuem tudo de mau ao “setor” (e não o enxergam como sistema) bancário, consolidando-se como “setor hegemônico”. Seria sua culpa inclusive as reformas neoliberais para a liberalização comercial e financeira na década de 1990.

Recentemente, os autores seguidores da moda da literatura sobre “financeirização” se precipitaram com a conjuntura no primeiro ano da pandemia. Houve breve tendência de queda da taxa de juros, dada a inicial Grande Depressão deflacionária. A queda dos juros foi causadora de pequena fuga de capitais da renda fixa para a renda variável.

Essa oscilação conjuntural não comprovou a pressuposta predominância de uma economia de mercado de capitais no Brasil. Não se definiu uma mudança estrutural e irreversível com uma massiva entrada de investidores no mercado de ações.

Os autores dessa literatura não examinam os contra-argumentos dos discordantes da visão da “financeirização” como algo esdrúxulo à evolução sistêmica. Para seus críticos, trata-se apenas da plena implementação do capitalismo financeiro, sendo um desdobramento sistêmico. A alavancagem financeira proporciona maior rentabilidade patrimonial às empresas, devido à maior escala de atuação, gerando empregos e renda.

Evidentemente, há um avanço mais rápido da capitalização do estoque de riqueza financeira pelos juros compostos diante do crescimento do fluxo das demais rendas. O ritmo é distinto, mas o volume agregado da renda do trabalho e lucro é superior ao total dos rendimentos dos juros. Anatocismo é a capitalização por juros compostos.

Diferentemente da dívida com juros simples, quando somente o principal rende juros, em uma dívida com juros compostos, após cada período, os juros devidos são incorporados ao principal e passam, por sua vez, a render juros. Quando o devedor paga ao banco cada prestação, contendo amortização do principal e juros contratados, ainda lhe são exigidos os juros sobre o saldo devedor.

Ora, o depositante (a prazo ou de poupança) exige juros compostos para a remuneração pelo custo de oportunidade no uso do seu dinheiro por outro. Um terceiro desconhecido por ele (com avaliação de risco feita pelo banco) usufruirá da chance de obter maior rentabilidade patrimonial com o uso de recursos de terceiros (depositantes).

Por qual razão não se deve compartilhar uma parcela dela, enquanto estiver de posse de dinheiro de terceiros? Se não, o tomador de empréstimos usaria o dinheiro para ganhar mais juros em lugar dos depositantes/investidores!

Não se dever adotar um reducionismo extremo de tudo de ruim no capitalismo ser devido à “financeirização”. É equivocado culpar as ausências de decisões de investimento por conta desse fenômeno – e não ao princípio do risco crescente (nível de endividamento), ao ritmo das vendas, ao grau de ociosidade no uso da capacidade produtiva, à falta de domínio das inovações tecnológicas, ao fim do bônus demográfico.

De fato, a revolução financeira ocorreu, na Holanda, quase dois séculos antes da revolução industrial, na Inglaterra, na virada do século XVIII. É ilógico inverter uma pré-condição para a tornar uma distorção do sistema capitalista.

Nos países de capitalismo tardio, o Estado com os bancos públicos saltou à frente de etapas a serem transcorridas, para tirar o atraso histórico. O esperado desenvolvimento pleno do capitalismo financeiro, por exemplo, por Ignácio Rangel em seu livro “A Inflação Brasileira”, publicado em 1963, agora prevê:

1. um sistema de pagamentos digitais atualizado em tecnologia;

2. uma relativa autonomia no endividamento com financiamento interno para o financiamento do desenvolvimento; e

3. uma possibilidade de trabalhadores de alta renda (10% mais ricos) para fornecer reservas financeiras para suas aposentadorias acima do teto da Previdência Social.

As três funções-chaves do sistema bancário, do qual todos somos partes, são respectivamente, esses três subsistemas: de pagamentos, de crédito e de gestão de dinheiro. Todos interagem entre si de maneira interdependente e dinâmica, isto é, com variações ao longo do tempo.

Com a gestão do dinheiro, os trabalhadores do varejo de alta renda manterão seu padrão de vida, quando se aposentarem, substituindo a renda do trabalho pela renda do capital financeiro. Eles se tornarão necessariamente “rentistas”, expressão demonizada pelo maniqueísmo dos adeptos da moda da literatura da “financeirização”.

A alavancagem financeira com crédito propiciará a retomada o crescimento dos empregos e renda. Bancos são imprescindíveis também para uma economia dinâmica.

A “moeda indexada” evitou o risco de dolarização, ocorrida em economias vizinhas à brasileira.

É preciso ter serenidade para aceitar o impossível mudar, porque é natural e irreversível no sistema capitalista, coragem para mudar o possível, quando é distorção social, e sabedoria para distinguir um do outro.

* Professor Titular do IE-UNICAMP. Autor do livro digital “Dívida Pública e Dívida Social: Pobres no Orçamento, Ricos nos Impostos (ou Pobres no Ativo, Ricos no Passivo)” (2022). Baixe em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.

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