Lula e sua própria armadilha

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Por Adhemar Mineiro1

Vamos começar por lembrar duas coisas. Outras poderiam ser lembradas.

Vale lembrar a primeira, sobre a criação do arcabouço fiscal. O novo arcabouço fiscal foi instituído pela Lei Complementar no. 200, do finalzinho de agosto de 2023. Com ele, o novo governo cumpriu um acordo feito na transição de governos com setores do Congresso, mais especialmente com o poderoso setor financeiro representado no Congresso.

Esta nova lei permitiu uma ampliação provisória do gasto público e o futuro fim da Lei de Teto de Gastos que, na prática, já caducara, pela impossibilidade prática de seu cumprimento e que deveria ser substituída por uma nova lei. A nova lei (que viria a ser o tal novo arcabouço fiscal, um novo regime fiscal alardeado como sustentável no médio e longo prazos), que permitiria um pouco mais de flexibilidade, mas mantendo na prática limites bem evidentes, herdados politicamente da Lei de Teto de Gastos. O novo arcabouço, na prática, permite a continuidade da essência do teto de gastos, só que agora em uma “roupagem” de viabilização mais exequível, uma vez que mais flexível.

Assim, essa lei do novo arcabouço fiscal funciona, na prática, como a “Carta ao povo brasileiro”, divulgada por Lula candidato em 2002, antes de assumir o governo, onde garantiu a não ruptura com a liberalização financeira do governo anterior e com o tal do tripé macroeconômico (superávit primário, câmbio flutuante e taxa de juros determinada pela política de metas de inflação), ou seja, com os consolidados interesses financeiros daquele período. Agora, também antes de assumir o governo, mas já eleito, o compromisso era pela manutenção da essência do limite de gastos, dando as garantias exigidas pela chamada “Faria Lima”, essa representação abstrata dos interesses mais profundos dos investidores financeiros.

E a segunda que vale ser lembrada: o governo Bolsonaro instituiu por lei a autonomia do Banco Central, que até existia na prática antes, mas sem as amarras da legalidade que instituem inclusive um mandato para presidente e diretores da instituição. Isso significa que, a princípio, duas das três políticas econômicas clássicas – a monetária e a cambial, que são atribuições do Banco Central – estão fora da esfera direta do Executivo. E a política fiscal, a terceira delas, está amarrada pelo arcabouço fiscal instituído, como estava antes, pelo teto de gastos.

Pois bem, agora o governo Lula começa a tentar avançar em suas políticas, mas… se confronta com o próprio arcabouço fiscal criado por esse governo. O arcabouço torna, de fato, o espaço para as políticas públicas bem reduzido.

Quer renegociar a dívida de estados (o que poderia facilitar uma base parlamentar mais sólida sem precisar pedir benção ao Centrão o tempo todo), negociando a situação dos estados do Sul e Sudeste, os mais encalacrados (em especial Rio de Janeiro, Minas, Rio Grande do Sul e São Paulo)? Difícil, mas não pode deixar de fazer, sob risco da inadimplência de fato, apenas evitada por medidas judiciais. Quer estender a renegociação aos que se encontram em dificuldades, mas em uma situação um pouco melhor, por exemplo, no Nordeste? Não pode, pelos limites fiscais.

Quer reduzir o ônus previdenciário das prefeituras, encalacradas com os novos enquadramentos nos novos regimes previdenciários? Não pode, por conta dos limites fiscais, o que de novo dificulta a negociação de bases parlamentares mais sólidas nesse momento.

Quer usar o orçamento para viabilizar a nova política industrial anunciada no final do ano passado, utilizando o acréscimo das compras públicas para garantir a demanda resultante dos novos investimentos (levando em consideração que o BNDES e outros fundos públicos e privados viabilizarão a ampliação da oferta via os investimentos novos previstos no programa “Nova Indústria Brasil”)? Não pode, por conta dos limites orçamentários do arcabouço.

Quer contratar os funcionários públicos necessários ao funcionamento mais eficiente do Estado depois da razia dos seis anos dos governos Temer e Bolsonaro, que tornaram a máquina disfuncional e ineficiente com a quantidade de cortes e não reposição de saídas por diversos motivos, o principal deles aposentadoria? Não pode. Quer negociar a reposição salarial dos funcionários públicos massacrados pela combinação da inflação de fato verificada com a política de reajustes zerados dos governos Temer e Bolsonaro? Não pode, em função do arcabouço. Quer readequar os planos de cargos e carreiras na área do setor público? Os limites estão dados pelo arcabouço.

Quer mudar o Brasil, buscando novos caminhos de desenvolvimento, incorporação das maiorias sociais através de políticas públicas, combate às desigualdades e às mazelas acumuladas por décadas no país? Inviável, porque os limites orçamentários têm que ser cumpridos.

Quando o governo tenta andar em qualquer que seja a direção – política, econômica ou social –, qualquer que seja a dimensão tentada, acaba por enfrentar os limites das amarras fiscais, com os quais o próprio governo, através do seu ministro da Fazenda, e com a pressão de um banco central independente, se comprometeu.

Esse o dilema atual, não só da política econômica, como da própria sobrevivência do governo Lula, e o resultado do processo sucessório. O governo de fato se confronta com os limites da camisa de força fiscal com a qual se comprometeu. Da decisão desse impasse depende o futuro dos rumos do país, talvez de sua própria democracia ameaçada.


Publicado originalmente em Terapia Política.

  1. Economista, doutorando do PPGCTIA/UFRRJ, membro da Coordenação da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia-RJ e assessor da Rede Brasileira pela Integração dos Povos. ↩︎
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