Teto de Gastos ou Equilíbrio Orçamentário? Analisando a Posição da Presidência

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Nota Técnica do Grupo de Análise dos Impactos da Crise

Nota Técnica – TETO DE GASTOS OU EQUILÍBRO ORÇAMENTÁRIO? ANALISANDO A POSIÇÃO DA PRESIDÊNCIA

Iniciamos esta Nota Técnica com as seguintes considerações: a gestão das finanças públicas é uma tarefa complexa, que requer um equilíbrio delicado entre a responsabilidade fiscal e o atendimento às necessidades sociais da população, além de preocupações com a dinâmica macroeconômica, especialmente o crescimento sustentado. Uma das metas muitas vezes perseguidas pelos governos é o “déficit zero”, que implica equilibrar as receitas e as despesas em um determinado período de tempo, geralmente um ano fiscal. No entanto, essa perseguição pode ter implicações significativas nos gastos sociais, e no crescimento econômico.

Cabe apontar que ao aparecer esta discussão, não se está falando do resultado total, uma vez que esse incluiria o pagamento de despesas financeiras. A discussão é viesada: se fala do resultado primário, isso é, arrecadação e despesas correntes, excluídos os pagamentos financeiros. Quer dizer, apertar os gastos para sobrar dinheiro para os pagamentos financeiros.

Ao longo dos últimos anos o que se viu foi uma histeria por parte de alguns agentes econômicos, e da grande mídia, de que o Brasil não irá obter avanços se não houver a responsabilidade fiscal. Um primeiro sinal desse charlatanismo econômico reside na comparação dos números fiscais com o distorcido e atípico ano de 2022, pois o superávit obtido foi fruto da distribuição de dividendos, da receita oriunda da venda de nosso patrimônio, via privatização, e do aumento das contribuições de exploração de commodities, como minério e petróleo.

Dados da Secretaria de Tesouro Nacional mostram que as receitas líquidas de dividendos, concessões e exploração de recursos naturais cresceram 106,3%, em valores nominais, entre 2021 e 2022, saindo de R$ 91,31 bilhões para R$ 188,218 bilhões. Se estas receitas não tivessem existido, o resultado seria um déficit de R$ 43,0 bilhões. Esses números mostram que o arrocho imposto à classe mais pobre deste país foi inócuo em relação ao resultado fiscal.

Essas primeiras considerações servem para mostrar que ao longo dos anos de vigência da chamada Lei de Teto de Gastos, já estava clara a impossibilidade de que a mesma fosse cumprida, como de fato ocorreu nos anos após a sua promulgação, no início do Governo Temer. Assim, logo após a vitória de Lula nas eleições presidenciais, as negociações entre as diversas forças políticas e os técnicos em orçamento, estivessem eles no grupo de transição do novo governo ou no Congresso Nacional, apontavam para uma espécie de “período de graça” no exercício orçamentário de 2023 (possibilitando alguma expansão do gasto, em especial aquelas direcionadas a atender algumas políticas sociais), com a condição de que fosse apresentada, ainda no primeiro semestre, uma proposta de substituição da Lei de Teto de Gastos por algo que resguardasse o espírito da “austeridade fiscal”. Nesse contexto, foi concebido e aprovado o chamado “Novo Arcabouço Fiscal”, que ainda se constitui uma camisa de força do ponto de vista de gastos.

Ocorre que medidas como controle do gasto público, de um lado, e a necessidade de atender urgentes políticas públicas de combate à gravíssima crise social herdada, de outro, não podem ser enquadradas pura e simplesmente no campo da tecnicalidade fiscal e da gestão orçamentária. Longe disso, representam um jogo de poder entre os interesses financeiros, sempre tão zelosos das garantias da remuneração de seus ganhos (concentrados em aplicações seguras na dívida pública interna), através do controle de todos os outros gastos públicos, exceto o maior deles, o gasto com juros.

Assim, ao defender o chamado “déficit zero” como objetivo, o Ministro da Fazenda não apenas pronuncia palavras que soam como música aos ouvidos do setor financeiro, tranquilizando os chamados “mercados” (de fato, o mercado financeiro), como se empodera frente aos demais setores no interior do governo federal. Se essa ideia prevalece, Fernando Haddad não é só o ministro da Fazenda, ele vira um superministro, uma espécie de primeiro ministro, com poder de enquadrar os demais, definindo o que pode e o que não pode ser feito. Ocorre que todos – mercados financeiros, Ministério da Fazenda, Banco Central, demais setores do governo, Congresso Nacional – sabem que o tal déficit zero é um objetivo abstrato que não será atingido, é apenas uma “orientação”. Ademais, a obtenção do déficit zero só é possível com medidas de austeridade fiscal, que envolvem a redução de despesas públicas e/ou o aumento de receitas. Tanto uma como outra dessas ações afetam diretamente os programas e políticas de gastos sociais, em especial nas áreas de educação, saúde, seguridade social e assistência social. E isso  Haddad, e todas e as torcidas de futebol do país juntas, sabem, que não teria a aprovação de Lula. Ela é apenas uma orientação que pode determinar prioridades, quais os interesses prevalecem em última instância, e dar poder a grupos sociais, a políticos e a alguns gestores públicos. Não apenas a um único gestor.

Foi exatamente em relação a isso que o Presidente da República, se manifestou na segunda  semana de novembro. Lula, com sua sensibilidade política, parece ter percebido três coisas.

A primeira, é que ele sabe que a conta será cobrada dele, pois uma vez aprovado um orçamento no Congresso que apontasse para o chamado “déficit zero”, às primeiras sinalizações de que haveria algum déficit – daí a mágica de usar a palavra déficit, ao invés de dizer exatamente o que significa do ponto de vista do orçamento aquela situação, que é, na verdade, equilíbrio orçamentário – tem uma conotação bem mais negativa do que dizer que se vai registrar um desequilíbrio, embora seja isso de fato o que vai acontecer, mesmo que pequeno. Nessa hipótese, a presidência teria que cortar e/ou contingenciar gastos, trazendo para si um enorme ônus político frente a parlamentares e à sociedade em geral. A segunda, como já referido, exatamente por isso o ministro da Fazenda se transformaria em um superministro. Finalmente, e isso é consenso, mesmo entre os operadores dos mercados, o país precisa registrar crescimento, investir, crescer, se reestruturar produtiva e socialmente, o que só pode ser feito com gasto público, para crescer, arrecadar mais e ter o equilíbrio dinâmico no futuro, e não um corte permanente de gastos que joga a arrecadação para baixo e na frente exige… novos cortes! É dessa lógica do círculo vicioso da austeridade que o presidente Lula aparentemente quer fugir, com a percepção de que só pode crescer politicamente frente à população se atender às demandas sociais, e garantir crescimento do emprego e da renda.

Portanto, essas lógicas diferenciadas de ação, em que o ministro da Fazenda privilegia “acalmar os mercados”, ou seja, sinalizar para os mercados financeiros que seus ganhos estão assegurados, e o presidente privilegia sinalizar para a população que ela terá melhorias sociais e econômicas, e que os parlamentares e gestores dos níveis subnacionais (Estados e Municípios) terão os recursos necessários para obras e desenvolvimento, colocaram o presidente e o ministro da Fazenda em posições diferentes, e está obrigando a que haja um ajuste político no interior do próprio governo. Todavia, a briga de Haddad não é com Lula, é com o conjunto de ministros, e o presidente está só expressando o que deve ser a posição ventilada entre os principais ministros responsáveis pelos gastos sociais e de investimentos. Se não tiverem garantias de que terão disponíveis os recursos necessários, vão apenas administrar restrições, o chamada “cobertor curto”, sujeito a uma série de pressões políticas e sociais. Essa definição a ser feita não decide apenas o orçamento do ano que vem, pode definir o futuro do atual governo, daí exatamente a sua importância.

Com a sua experiência de vida, e de oito anos de gestão no Executivo, Lula conclamou os setores sociais organizados a pressionarem o atual governo, sabendo que o “outro lado” (especialmente os interesses do mundo financeiro) pressionam e têm apoio logístico da grande imprensa. Administrar conflitos envolve arbitrar as pressões que se originam de muitos lados. Se apenas um lado pressionar, é dizer sim ou não, em geral cedendo aos interesses únicos que expressam essa pressão.

Lula sabe que reduções nos gastos sociais (educação, saúde e seguridade social)  podem ter efeitos adversos sobre a qualidade e a disponibilidade de serviços públicos essenciais, afetando a qualidade de vida da população e prejudicando os grupos mais vulneráveis.

Assim, cortes no financiamento da educação podem resultar em turmas superlotadas, falta de recursos para a formação de professores, menores investimentos em infraestrutura escolar, comprometendo a qualidade do ensino e prejudicando o desenvolvimento educacional das gerações futuras.

Reduções nos gastos com saúde podem levar a uma menor disponibilidade de serviços de saúde e acesso limitado a tratamentos médicos, comprometendo o financiamento do SUS, que se mostrou indispensável durante a pandemia, e carece de mais investimentos para ampliar a sua capilaridade e universalidade de atendimento, cuja ação é referência para o mundo, que os “mercados” querem privatizar para si.

Cortes na seguridade social podem diminuir o apoio financeiro a pessoas em situações de vulnerabilidade, como idosos, desempregados e pessoas com deficiência, criando dificuldades financeiras adicionais para aqueles que dependem desses programas de assistência, essenciais no apoio às pessoas em situações de pobreza e vulnerabilidade social.

Ademais, Lula sabe que o impacto nos gastos sociais não afeta todas as camadas da população da mesma forma. Normalmente, as pessoas mais afetadas são aquelas que já enfrentam desigualdades e desvantagens econômicas. Cortes nos gastos sociais podem agravar essas desigualdades, uma vez que serviços públicos de qualidade inferior podem dificultar a mobilidade social e o acesso a oportunidades. Além disso, a falta de investimento em áreas como educação e saúde pode prejudicar o crescimento econômico a longo prazo. Uma força de trabalho menos educada e menos saudável será menos produtiva e competitiva em uma economia globalizada. Portanto, o governo precisa considerar cuidadosamente os impactos nos gastos sociais ao buscar a meta de déficit zero. Encontrar o equilíbrio entre a responsabilidade fiscal e o bem-estar social é crucial para garantir que a população tenha acesso a serviços essenciais e para promover um desenvolvimento econômico sustentável, em especial no atual contexto econômico e social do país. Em tempos de recessão ou crise econômica, a busca pelo déficit zero pode se tornar ainda mais desafiadora, uma vez que a demanda por serviços sociais frequentemente aumenta, ao mesmo tempo em que as receitas podem diminuir. Aumentar as receitas fiscais de maneira sustentável pode ser uma alternativa ao corte de gastos sociais. Isso pode ser alcançado por meio da ampliação da base tributária, do combate à evasão fiscal e do estabelecimento de um sistema de impostos mais eficiente.

A situação atual do debate em torno do chamado “déficit zero” – que, como dito anteriormente, poderia ser melhor qualificado como equilíbrio orçamentário – mais uma vez é icônica nesse sentido, explicitando a pugna pelos interesses do capital financeiro, de um lado, e os rumos de um desenvolvimento econômico e social inclusivo, de outro. É hora de pressionar.


Grupo de Análise dos Impactos da Crise

Associação Brasileira de Economistas pela Democracia – ABED

Equipe Técnica: Adhemar Mineiro (Coordenação), Antônio Rosevaldo Ferreira da Silva, Eron José Maranho, Jaderson Goulart Junior, José Moraes Neto e Juarez Varallo Pont.

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