O mundo enfrentou uma pandemia sanitária com impactos econômicos, de maneira inesperada, nos dois anos iniciais da década corrente.
por Fernando Nogueira da Costa
O valor adicionado em fluxo, em uma economia de mercado, refere-se à criação de valor ao longo do tempo pelos diversos agentes econômicos. Esse valor é gerado por meio da produção de bens e serviços, onde cada estágio da cadeia produtiva adiciona valor ao produto até o consumo final.
Por exemplo, um agricultor produz trigo, vendido a uma padaria. Por sua vez, esta o utiliza para fazer pão, adicionando valor ao produto. Posteriormente, o pão é vendido a consumidores, gerando novamente valor.
Esse processo de criação de valor em fluxo é contínuo e dinâmico, ou seja, impulsiona o crescimento econômico ao longo do tempo em uma economia de mercado. Empresas inovam, investem em tecnologia, melhoram processos produtivos e buscam atender às demandas dos consumidores para maximizar o valor adicionado ao longo do tempo.
Com isso, geram empregos com renda para os trabalhadores. A produtividade, isto é, o quanto é produzido por trabalhador, evolui com o emprego de tecnologia.
Denuncia-se mais a concentração de renda, no sistema capitalista, em lugar de verificar como a riqueza é acumulada em estoque por meio da posse de ativos. Isso inclui não apenas bens físicos, como imóveis, maquinário e estoques, mas também ativos financeiros, como ações, títulos de dívida e investimentos. Os indivíduos e as empresas acumulam riqueza ao longo do tempo através da poupança (não gasto de toda a renda recebida) e do investimento desses recursos em diversos ativos.
Evidentemente, a acumulação de riqueza em estoque não é uniforme na sociedade. Em uma economia capitalista, a distribuição de riqueza é bastante desigual, com alguns indivíduos e empresas acumulando grandes quantidades de ativos, enquanto outros têm menos recursos disponíveis para alcançar essa meta.
A riqueza é um componente-chave do sistema capitalista. Serve, para os trabalhadores, como reserva de recursos para consumo futuro, especialmente durante a aposentadoria. Também promove oportunidades no setor informal e apoia empreendimentos empresariais, quer diretamente, quer como garantia de empréstimos. Mas, acima de tudo, a riqueza ajuda a reduzir a vulnerabilidade a acontecimentos inesperados, como desemprego, problemas de saúde ou catástrofes naturais.
Estas funções são essenciais mesmo para habitantes em países com fortes redes de segurança social e sistemas de saúde pública. Mas importa mais ainda em países com regimes de segurança social rudimentares e cuidados de saúde limitados, como é o caso em grande parte do mundo em desenvolvimento.
O mundo enfrentou uma pandemia sanitária com impactos econômicos, de maneira inesperada, nos dois anos iniciais da década corrente. Ficou evidente os países e indivíduos com menor riqueza terem tido menos opções para lidar com a emergência. A riqueza das famílias determina a resiliência das nações e dos indivíduos a vários choques, por isso, é importante para todas as famílias a acumularem – e não só as ricas.
Quem passou por dificuldades, durante a pandemia, não se beneficiou do aumento geral da riqueza, ocorrido em 2020 e 2021, conforme registrou o Global Wealth Report 2023 do Credit Suisse/UBS. O regime de juros baixos conduziu à inflação dos preços dos ativos, porém, também contribuiu para a inflação das matérias-primas e/ou commodities com impacto negativo no poder aquisitivo real.
A inflação recebeu outro choque, devido à guerra, durante 2022, causando mais dificuldades tanto para os detentores como para os não detentores de riqueza. Provocou aumentos das taxas de juro, os quais levaram a reduções na riqueza financeira, embora o impacto na riqueza não financeira tenha sido moderado.
O Relatório mostra a riqueza por adulto ter crescido de US$ 31.380 a US$ 87.489, no período 2000-2021, uma taxa média de crescimento de 5% ao ano. Desde 2008, a taxa de crescimento foi menor em termos de dólares americanos, para a maioria dos países, mas isso se deveu em grande parte à valorização relativa do dólar.
Na virada do século, os ativos financeiros representavam 55,3% dos ativos brutos das famílias. Essa participação caiu até 2008, brevemente, abaixo de 50%.
No rescaldo da crise financeira global, os ativos não financeiros (propriedades imobiliárias e bens de consumo duráveis) apresentaram pouco crescimento, em todo o mundo, em contraste com a riqueza financeira sob forma de ações e títulos. Os ativos financeiros reassumiram a liderança e, em 2020, já representavam 53,9% do ativo bruto.
Expressa em proporção da riqueza bruta, a dívida das famílias passou de 13,5% da riqueza bruta em 2000 para 14,4% em 2008. Desde então, caiu para 11,2%, abaixo do nível do início do século.
Sobre as mudanças na riqueza, durante o ano civil de 2021, em quase todos os países, ela aumentou no agregado. No lado negativo, o Brasil foi o maior perdedor, em 2021, perdendo US$ 839 bilhões, devido à desvalorização de sua moeda nacional em relação ao dólar americano. Equivaleu a um declínio de 24% na riqueza média dos brasileiros, contabilizada em dólar, naquele ano.
A cotação do dólar no país saiu de R$ 4,09, em janeiro de 2020, até atingir R$ 5,82, em junho daquele ano, e passar a oscilar em torno da média de R$ 5,38, no segundo semestre, embora tenha alcançado R$ 5,62 em novembro. Apenas em março de 2021 a política de elevação dos juros do Banco Central do Brasil foi retomada, embora tenha sido mais cedo diante da reação tardia de outros Bancos Centrais.
Em 2021, a média do dólar foi de R$ 5,39; em 2022, caiu para R$ 5,16; e em 2023 para R$ 5,02. No primeiro trimestre de 2024, flutuou em torno de R$ 4,93 / US$.
A inflação, o aumento das taxas de juro e a depreciação das moedas nacionais causaram uma reversão da elevação da riqueza mundial em 2022. As perdas podem ser atribuídas à valorização do dólar americano. Fez a riqueza global diminuir 5,8% em termos reais. Porém, a inflação aumentou os valores nominais dos preços em dólares americanos.
A evolução da riqueza das famílias, durante os últimos anos, foi incomum em vários aspectos. Durante a primeira fase da pandemia da COVID-19, em 2020, a riqueza das famílias revelou-se altamente resistente aos reveses econômicos vividos em todo o mundo.
O apoio financeiro concedido às famílias pelo governo central, em muitos países, juntamente com taxas de juro mais baixas e limitações nas oportunidades de consumo, aumentou a poupança das famílias. Levou também a aumentos nos preços das ações (aplicações cruciais fora do país) e dos imóveis para habitação.
O resultado foi um aumento significativo na riqueza das famílias em muitos países. Em 2021, estas tendências foram reforçadas, porque a atividade macroeconômica se recuperou, ainda em um ambiente de juros baixos. Resultou no aumento mais rápido da riqueza das famílias, jamais antes registrado no mundo, fora o Brasil.
O choque inflacionário, em 2022, provocou aumentos nas taxas de juro, prejudicando o crescimento econômico e deprimindo os preços dos ativos. Contribuiu para a depreciação generalizada das moedas, exceto a brasileira, diante do dólar dos EUA.
Como resultado, medido em dólares americanos nominais atuais, a riqueza global total das famílias caiu US$ 11,3 trilhões (-2,4%), para terminar o ano em US$ 454,4 trilhões. Este foi o primeiro declínio na riqueza das famílias desde a crise financeira global em 2008, e a segunda maior redução deste século, seja em termos de valores absolutos em dólares, seja na variação percentual.
A riqueza por adulto também registrou a segunda maior redução desde 2000, caindo 3.198 dólares (-3,6%). Ficou em 84.718 dólares por adulto no fim de 2022.
De acordo com o Credit Suisse/UBS, a principal exceção de não perda de riqueza foi o Brasil, pois acumulou mais US$ 1,1 trilhão. Suas estimativas sugerem o Brasil ter ultrapassado o limiar do grupo intermediário de riqueza média, na faixa dos 25.000 a 100.000 dólares americanos, em 2022.
Não apontam a razão, mas minha hipótese é, além da apreciação da moeda nacional, aqui ser o “reino da renda fixa”. A riqueza é acumulada em juros compostos (e reais), disparatados em relação aos vigentes no resto do mundo.
Publicado originalmente em Jornal GNN.