Dívida Pública e a Falta de Sinergia entre o Tesouro e o Banco Central no Brasil no Período 2004/16

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Por Luiz Alberto Marques Vieira Filho* e Pedro Rossi**

1.              Introdução

Dentre a literatura internacional sobre a relação Banco Central e Tesouro Nacional, a Teoria Monetária Moderna (MMT) tem se destacado no estudo dessas instituições a partir da articulação entre as políticas monetária e fiscal. A MMTmostra que em países emissores de moeda soberana, como o Brasil, não existe restrição financeira ao gasto público, no sentido de ausência de dinheiro. Há, no entanto, especificidades no Brasil na relação Tesouro-Banco Central que merecem atenção acadêmica e diálogo com a MMT. 

A experiência brasileira nos anos 80 e 90 ensina que a dívida pública pode ser rolada em condições macroeconômicas dificílimas, mas que a estrutura desses passivos pode ampliar as vulnerabilidades da economia e reduzir os espaços das políticas fiscal e monetária. Ou seja, para além da ausência de restrições fiscais em moeda nacional, há questões relativas à qualidade da dívida que merecem atenção. 

Nesse contexto, o objetivo deste artigo é, a partir do diálogo da MMT e oferecendo uma contribuição sobre a análise dos passivos estatais, mostrar que a relação recente entre o Banco Central do Brasil e o Tesouro Nacional foi marcada pela falta de sinergia no período 2004/2016, o que dificultou a obtenção de um perfil da dívida pública desejável e gerou fragilidades para a ocorrência de crises monetárias e fugas de capitais. Nesse sentido, tratase de uma discussão da qualidade dos passivos do Estado a partir das interações das políticas monetária e fiscal e das operações do Banco Central e do Tesouro Nacional e como a estrutura dos passivos pode ser relevante para o reequilíbrio externo da economia. Opta-se por esse período, porque após 2016 houve uma alteração no regime fiscal e eventos extraordinários, como a pandemia de COVID-19, o que requer uma análise detalhada que vai além dos objetivos desse artigo e será realizada a posteriori.

Para isso, o artigo se divide em 3 seções para além dessa introdução e das considerações finais. Na primeira seção, apresentamos as linhas gerais da Teoria Monetária Moderna e como o gasto público implica aumento na liquidez da economia, ampliando as reservas dos bancos depositadas no Banco Central, o que acaba criando um mercado cativo para os títulos da dívida pública. Na seção seguinte, apresentamos as críticas que a MMT recebeu sobre o seu funcionamento em países emissores de moeda periférica e apontamos a importância da esterilização da moeda emitida em decorrência do gasto público e como o perfil da dívida aumentou as vulnerabilidades da economia brasileira na crise dos anos 80 e 90. Por fim, na última seção, mostramos como a operacionalização da política monetária pelo Banco Central dificultou a melhora no perfil da dívida pública e permite ao mercado determinar a oferta de títulos de curtíssimo prazo e sem risco.

2.              A Modern Monetary Theory e o Gasto Público como Emissão Monetária 

A Teoria Monetária Moderna (MMT) surgiu dentro da Escola Pós-keynesiana e explicita a lógica de financiamento do Estado, mostrando que Estados que emitem uma moeda soberana não estão sujeitos a restrições ao financiamento das despesas públicas. A MMT promove uma análise detalhada da institucionalidade das políticas fiscais e monetárias, explicitando as relações entre Banco Central e Tesouro, que serão fundamentais para os fins do presente artigo. Assim, a MMT vai além dos trabalhos pioneiros de Abba Lerner sobre as Finanças Funcionais, mostrando a validade deste arcabouço analítico na economia contemporânea em economias com moedas soberanas (Bell S. , 2000; Bell & Wray, 2002; Fullwiler, 2006; Mosler & Forstater, 1999; Rezende, 2009; Wray L. , 2002; Wray L. , 2003a; Wray L. , 2003b; e Wray L. , 2015.

Os limites para o endividamento e para o déficit público seriam dados pelo próprio pleno emprego ou pelo aumento da inflação, quando a economia se aproximasse de sua plena capacidade. Dessa forma, é a obtenção dos objetivos da política econômica que define os limites para a política fiscal (Dos Santos, 2005). A compra e a venda de títulos públicos buscam calibrar a taxa de juros para o nível de juros adequado a fim de que os investimentos sejam alcançados. A MMT mostra o caráter eminentemente estatal da emissão monetária e da consolidação de sua aceitabilidade mediante à aceitação nos guichês do Estado para o pagamento de impostos, contribuições e taxas ou qualquer outra forma de pagamento. Para a MMT, a divisão entre Banco Central e Tesouro é artificial e esconde o verdadeiro caráter das emissões de títulos do Tesouro, que muito mais do que operações de financiamento, é uma operação de política monetária.

A despesa pública é uma emissão de moeda e aumenta a oferta de liquidez ao mercado, ajudando a satisfazer a demanda por ativos líquidos. Ao realizar um pagamento, o governo recebe um bem ou serviço e o agente privado será detentor de papel moeda ou de depósitos em um banco comercial, que terá o valor correspondente em depósitos nas reservas do Banco Central. O gasto público aumenta a oferta de liquidez na mesma quantidade de seu valor, que ficará disponível para procurar por remuneração, o que do ponto de vista sistêmico só pode ser garantido por emissões de títulos pelo Estado. Assim, o financiamento das despesas públicas é garantido na prática, com a sua própria realização, que pode criar a demanda pelos títulos para sua rolagem, conforme a preferência dos agentes entre a base monetária e os títulos públicos.  Por isso, o resultado imediato é uma redução nas taxas de juros no mercado interbancário, uma vez que os bancos passam a ofertar o excesso de liquidez em operações no overnight. Dessa forma, para a taxa de juros não ficar abaixo da meta definida pelo Banco Central, o próprio Tesouro poderá recompor seu colchão de liquidez com a emissão de títulos ou o Banco Central será obrigado a vender títulos do Tesouro que estão em seu portfólio ou realizar operações compromissadas, que são operações temporárias de redução da liquidez. 

Sendo assim, o gasto público é uma forma de ofertar a liquidez demandada pelos agentes privados para mitigar os efeitos da incerteza. Os dispêndios do banco central com a compra de títulos, moedas estrangeiras ou quaisquer outros ativos de propriedade do mercado e o pagamento de perdas com derivativos resultam em aumentos das reservas bancárias depositadas no próprio Banco Central de propriedade dos bancos comerciais, podendo eventualmente ser convertidas em papel moeda (Wray L. , 2003). Em sentido oposto, a arrecadação de tributos, a venda de títulos pelo Tesouro ou Banco Central, o recebimento de empréstimos da janela de redesconto e o aumento dos depósitos compulsórios de reservas reduzem a quantidade de moeda em circulação e, portanto, a liquidez disponível na economia. 

Autores brasileiros ligados a MMT, Jorge (2020) e Gerioni (2020) apontam que os títulos públicos de longo prazo teriam a característica de sob condições normais terem juros mais elevados, por carregarem maiores riscos, mas que não possuiriam nenhum atributo especial, uma vez que não haveria risco de não financiamento em países emissores de moeda soberana. No entanto, é preciso avaliar a relações entre a liquidez da economia, o perfil dos títulos e sua conexão com fugas de capitais. É neste ponto que pretendemos dar uma pequena contribuição na próxima seção.

3.              A Dívida Pública e a Fragilidade Financeira nas Economias Periféricas

Nesta seção, apresentaremos as principais críticas a MMT no âmbito das economias periféricas e as possibilidades de a liquidez decorrente da despesa pública ensejar crises monetárias e fugas de capitais. Redefiniremos a questão da dívida pública como um problema de estrutura dos passivos, que poderão fornecer a liquidez necessária para a ocorrência dessas crises. 

A problemática do câmbio em economias periféricas é analisada por uma série de autores que abordam a temática da hierarquia das moedas como Carneiro (2008), Cohen (2004), De Conti (2011), De Conti, Prates e Plihon (2014), Prates (2005), Prates (2017) e Rossi (2016). Nesses trabalhos, é mostrado que as transações comerciais e financeiras estão concentradas em poucas moedas nacionais, o que traz consequências relevantes na liberdade para conduzir políticas econômicas. A posição das moedas no Sistema Monetário Internacional (SMI) depende de sua liquidez e do risco em relação à moeda central do sistema, ou seja, a facilidade com que é convertida nessa moeda central. A moeda central do sistema, que é a referência internacional de reserva de valor, permite ao país emissor que modificações nos juros praticamente não alterem a demanda internacional por seus títulos, o que amplia a capacidade de sustentar déficits externos e a autonomia da política monetária. 

As moedas periféricas, por seu turno, não exercem nenhuma das funções de moeda internacionalmente, mesmo que sejam líquidas em âmbito doméstico. Esse menor prêmio de liquidez no mercado internacional exigirá retornos maiores dos títulos de dívida emitidos por esses países, que também dependerão dos ciclos internacionais de liquidez, quando o apetite pelo risco dos agentes se amplia. Dessa forma, os ativos denominados nessas moedas são os primeiros a serem abandonados quando as incertezas no cenário internacional e a preferência pela liquidez crescem. Essas fugas de capitais poderão obrigar os bancos centrais a elevar os juros para conter desvalorizações abruptas da moeda, caso as reservas cambiais não sejam suficientes.

Wray (2015) não foi indiferente ao debate sobre as limitações externas à política fiscal, mesmo com moedas soberanas, concordando que os EUA podem incorrer em deficits externos emitindo dívida em sua própria moeda e que países em desenvolvimento podem não encontrar demanda externa para os seus títulos. De modo geral, Wray (2015) defende que bastaria um regime de câmbio flutuante para assegurar o espaço da política econômica, recorrendo ao famoso trilema, segundo o qual um governo pode escolher apenas duas dessas três opções: política econômica doméstica independente, taxa de câmbio fixa e liberdade de capitais. Além disso, Wray (2015) também considera que superávits sistemáticos no balanço de pagamentos, como ocorrem em diversas economias asiáticas, e controle de capitais podem ampliar a liberdade da política econômica em países em desenvolvimento, bem como o acúmulo de reservas cambiais. 

Prates (2017), contudo, destaca que Wray (2015) não considera a real dinâmica do sistema monetário internacional e suas implicações para economias em desenvolvimento, incluindo o debate que ocorre entre os pós-keynesianos (Schulmeister, 1988); (Flassbeck, 2011); e (Rey, 2013). Após o fim do sistema de Bretton Woods, a economia mundial passou a ser caracterizada pelas taxas de câmbio flexíveis e pela liberdade da mobilidade de capitais, pelos seus fluxos de curto prazo (investimentos de portfólio e empréstimos bancários de curto prazo), que são extremamente voláteis. A lógica instável desses investimentos, que segue a percepção de risco dos investidores internacionais, subordina a ação dos bancos centrais às tentativas de estabilização desses fluxos cambiais, o que implica perda de autonomia da política monetária. De Conti e Verghanini (2017) lembram que a magnitude das oscilações cambiais na periferia pode levar alguns agentes econômicos privados à falência e ao aumento da inflação.

Parte das críticas dos autores da hierarquia monetária já foram respondidas ou incorporadas às análises mais recentes de economistas ligados à MMT, tanto no exterior como no Brasil. Ao analisar os problemas externos e a insuficiência do câmbio flutuante sobre o caso húngaro, Mitchell (2012) e Wray (2015) consideraram que sucessivas desvalorizações cambiais podem não reestabelecer o equilíbrio externo e, dependo da composição das exportações, também podem não estimular suficientemente as vendas ao exterior. Gerioni (2020) evidencia que sob a perspectiva da taxa de juros exógena, os bancos centrais mantêm a capacidade de determinar as taxas de juros de curto prazo e influenciar as de longo prazo mesmo em episódios de fugas de capitais. Adicionalmente, Gerioni (2020) também considera trabalhos empíricos mostram que os efeitos de pass-through sobre a inflação estão se reduzindo ao longo do tempo e com efeitos temporários, o que não ensejaria motivos para se renunciar às políticas monetárias e fiscais para a gestão do nível de emprego na economia (Frenkel et al., 2005; Silva e Vernengo 2008). Dalto et al (2020) lembram que o equilíbrio no setor externo requer alterações estruturais na economia, aumentando a capacidade de exportar ou reduzindo a necessidade de importar. Esses objetivos exigem investimentos públicos em projetos de infraestrutura que aumentam a produtividade da economia, em ciência e tecnologia, em capacidade produtiva que substituem importações de energia e outros bens essenciais ou em setores exportadores que a economia possua vantagens comparativas dinâmicas.  

Porém, cabe ressaltar, que os movimentos de aceleração e desaceleração da inflação brasileira ainda possuem uma importante influência da taxa de câmbio (Serrano, 2010), enquanto o acúmulo de reservas internacionais e a melhora no perfil da dívida pública nas últimas décadas reduzem a possibilidade de fugas cambiais persistentes, como ocorrido nas décadas de 80 e 90.  

De fato, o que ocorre não é a ausência de restrição orçamentária para o governo, mas a criação da demanda potencial por títulos públicos que deverá retirar moeda de circulação. Quando o governo gasta, ocorre um aumento na base monetária de recursos que buscarão investimentos lucrativos e a única saída sistêmica, ou seja, pelo conjunto dos agentes, são os títulos públicos ofertados pelo Banco Central ou pelo Tesouro Nacional. Mas esse retorno ao caixa do Tesouro não é automático e dependerá de algumas circunstâncias e condições, que são ainda mais relevantes em países periféricos, que possuem incertezas substancialmente maiores e, consequentemente, maior prêmio de liquidez para a moeda.

Os ativos líquidos são aqueles que podem ser rapidamente convertidos em moeda com baixos custos de transação e de manutenção. (Davidson, 2011: 88) A principal característica da moeda é ter um rendimento zero, um custo de carregamento muito baixo (eventualmente custo de guarda), mas um prêmio de liquidez substancial. (Keynes J. M., 1936). Os economistas pós-keynesianos, incluindo aqueles adeptos da MMT, destacam o papel da preferência pela liquidez na alocação dos portfólios, considerando a teoria da preferência pela liquidez como uma teoria geral dos preços dos ativos e muito mais que uma teoria pela demanda por moeda (Keynes J. , 1937) (Townshend, 1937). No âmbito desse artigo, é importante considerar as diferenças de liquidez entre os títulos públicos, o trade-off entre os prazos da dívida pública diante da preferência pela liquidez.

Contudo, cabe ressaltar que o mercado de dívida pública nos grandes países periféricos é organizado e movimenta diariamente elevado volume de recursos, o que garante a liquidez dos títulos mesmo de prazos mais longos no mercado secundário. Os agentes podem individualmente se desfazer de seus títulos sem grandes descontos em relação aos preços praticados. Entretanto, os papéis de longo prazo e rendimentos fixos tendem a se desvalorizar mais fortemente diante de movimentos de venda. Ou seja, os preços de títulos de longo prazo e pré-fixados possuem uma sensibilidade maior às variações nas taxas de juros, o que é expresso pelo conceito de “duração”.  

A título de exemplo, apresentamos o Gráfico 1 com o valor com base 100 em 01 de janeiro de 2014 de uma LFT com vencimento em 07 de março de 2017 e de uma NTB-B Principal, título que paga juros e o IPCA, com vencimento em 15 de março de 2035. Nesse gráfico, é possível observar que, enquanto as LFTs se valorizaram constantemente e sem sobressaltos durante o período, as NTN-Bs oscilaram fortemente e chegaram a registrar substanciais desvalorizações em alguns períodos. Por exemplo, entre 25 de maio de 2015 e 24 de setembro desse mesmo ano, o valor de venda de uma NTN-B Principal 2035 caiu 28,42%. 

Gráfico 1 – Preço de Venda dos Títulos e Taxa de Câmbio (Jan/14 = 100)

 

NTB-B Principal 2035                        Câmbio             LFT 2017

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Tesouro Nacional.

A análise de MMTistas brasileiros considera o perfil da dívida pública de menor relevância, uma vez que países emissores de moeda soberana sempre poderão emitir moeda para arcar com o vencimento da dívida. Além disso, consideram que o alongamento da dívida requer juros maiores, com indesejáveis efeitos redistributivos. Contudo, reconhecem que em momentos de maior incerteza, ocorre a pós-fixação e encurtamento pontual do perfil da dívida pública (Jorge, 2020) (Gerioni, 2020).

No caso de países periféricos, o referencial de acumulação pode se dar no exterior, como mostram os economistas da hierarquia monetária, o que torna a possibilidade de enxugar essa liquidez essencial para evitar uma fuga sistemática desses recursos ao exterior, comprometendo a estabilidade da moeda nacional. Não basta que a moeda criada pelo gasto público se converta em títulos públicos, é preciso que o perfil da dívida pública desincentive sua reconversão em moeda e, posteriormente, fuga para moedas estrangeiras. Dessa forma, o papel da emissão de títulos da dívida pública vai muito além de garantir rendimentos aos recursos líquidos disponíveis e se torna chave na defesa da moeda nacional. Nesse sentido, o gráfico 1, mostra como o movimento de preços da NTN-B Principal 2035 é praticamente o inverso da taxa de câmbio, o que indica que as vendas de títulos públicos ajudaram a alimentar a fuga de capitais do período. 

No entanto, é preciso compreender que a estrutura de preços de títulos longos e com duração elevada como a NTN-B auxilia no reequilíbrio externo de 2 formas complementares. A primeira é que a queda dos preços desses títulos, conjuntamente com a desvalorização cambial, reduz o passivo externo líquido da economia. A segunda é que a redução dos preços desses títulos é acompanhada pela elevação dos seus rendimentos, o que os torna mais atrativos a novos investidores e aos seus detentores remanescentes. Esta estrutura ajuda a explicar o movimento de curto prazo de desvalorização e recuperação do valor desses títulos, apontado por Jorge (2020), uma vez que normalização dos mercados aumenta a influência das taxas de juros curtas sobre as de longo prazo. 

A importância da desdolarização dos passivos externos brasileiros e da desvalorização de ativos marcados a mercado como ações e títulos de dívida é apontado por Biancarelli (2019) como fatores que reduziram a vulnerabilidade externa no período analisado:

A chave para a compreensão de tal trajetória está na mudança de local de negociação destes instrumentos, com aumento expressivo das ações e títulos de renda fixa no mercado doméstico. Somando-se estes passivos à parte do IDE relativa à participação no capital, tem-se o total de compromissos denominados em moeda nacional… Com tal “desdolarização” parcial, a desvalorização cambial acelerada, a partir de meados de 2014, contribuiu para melhorar a posição externa do país, ao contrário do que tradicionalmente ocorre. Como parte importante destes compromissos são marcados a valores de mercado, a queda nas cotações de títulos e ações também contribuiu para esta melhora patrimonial. O resultado disso … é que a movimentação no estoque de passivo externo da economia brasileira, e, portanto, de sua Posição Internacional de Investimento, descola-se completamente dos fluxos registrados no Balanço de Pagamentos.

(Biancarelli, 2019, pp. 230-231)

Quanto a eventuais dificuldades de rolagem, basta que o Tesouro aumente a liquidez dos títulos públicos oferecidos ao mercado, encurtando prazos e adequando indexadores para que a dívida seja rolada. Dessa forma, o Tesouro pode tanto gerenciar os rendimentos dos títulos como a sua liquidez, num trade-off entre custo e perfil de dívida, buscando o mix mais adequado à gestão da dívida pública. Além disso, como esses títulos constituem parte relevante da riqueza financeira, os volumes negociados no mercado secundário costumam ser consideráveis mesmo em grandes países em desenvolvimento, o que garante a facilidade para a venda desses títulos, a menos que ocorra uma crise sistêmica que exija grandes descontos para a sua venda. Por isso, o encurtamento de prazos e indexadores menos sensíveis à incerteza reduzem os riscos dos títulos públicos e aumentam a sua liquidez em momentos de crise, o que garante a sua aceitabilidade pelo mercado, embora possa acarretar aumento nas vulnerabilidades externas da economia.  Esse movimento é observado por Jorge (2020), que aponta que exatamente em momentos de crises internacionais, políticas ou rebaixamento de rating ocorre um aumento nas emissões pelo Tesouro Nacional de títulos pós-fixados ou de curto prazo, embora os efeitos da perda do grau de investimento em setembro de 2015 tenham sido temporários.

Nesse trabalho, consideramos que quando o governo gasta, há um aumento da base monetária, na quantidade de moeda disponível para a sociedade e, esta moeda como definido por (Keynes J. M., 1936), possui os atributos de rendimento “q” nulo, custo de carregamento “c” desprezível, mas prêmio de liquidez “l” considerável. Em tempos normais, basta que o rendimento “q” de um título da dívida pública e seu prêmio de liquidez “l” seja superior ao prêmio de liquidez da moeda “l” para que exista a demanda para a sua aquisição. Como gestor da dívida pública e emissor da própria moeda, o governo pode tanto reduzir os prazos dos títulos, criar indexadores e incentivar o mercado secundário de dívida pública, o que eleva a liquidez dos títulos públicos, como aumentar o rendimento pago aos seus detentores. Dessa maneira, o governo tem ao seu alcance os mecanismos de incentivo para que os detentores da moeda migrem para os títulos públicos, o que garante a demanda por seu financiamento. O fato é que o prazo médio da dívida pública e seus indexadores podem variar consideravelmente conforme varia o prêmio de liquidez da base monetária, que é constituída pelo papel moeda em poder do público e pelas reservas bancárias, bem como pela propensão dos agentes em transformar essa riqueza líquida em riqueza financeira ilíquida e mais rentável. Por isso, o prêmio de liquidez das reservas bancárias não invalida a capacidade do Estado de refinanciar seus títulos, na prática, indefinidamente. O Estado, que emite tanto a moeda como os títulos da dívida pública, pode ajustar a liquidez de seus títulos às possibilidades de financiamento do mercado. 

A possibilidade de criação de indexadores para a remuneração da dívida pública (índices de preços, cestas de produtos, moedas estrangeiras, juros interbancários) permite que os títulos públicos mantenham sua funcionalidade na acumulação de capital. Essa questão é essencial, pois a dívida pública será liquidada e paga em moeda doméstica, ao menos enquanto o processo de sua destruição não estiver avançado até o ponto de que uma moeda estrangeira a tenha substituído em todas as suas funções. No entanto, como apontaremos mais a frente, esse processo poderá fragilizar a estrutura financeira da dívida pública, criando vulnerabilidades à economia como um todo. 

A experiência brasileira nas graves crises dos anos 80 e 90 sugere que, enquanto a moeda preservar sua função de meio de pagamento, a dívida pública em moeda nacional poderá ser rolada. Mesmo que a moeda deixe de poder exercer as funções de reserva de valor ou de unidade de conta, a dívida pública poderá ser indexada a uma cesta de produtos, a juros de mercado ou a uma moeda estrangeira, o que garante a funcionalidade da dívida pública no ciclo de valorização do capital. Assim, os prazos curtos e alguns indexadores garantem a liquidez da dívida pública, enquanto os juros e os indexadores garantem a dívida pública como meio de acumulação do capital. Mas o financiamento da dívida pública com um perfil mais líquido não é livre de problemas, uma vez que sua liquidez pode facilitar as apostas especulativas contra a moeda. 

Belluzzo e Almeida (2002)[1] apontam que esse movimento de liquidez crescente da dívida pública é uma ameaça a existência da própria moeda, uma vez que estoques gigantescos de riqueza podem se converter rapidamente em moedas estrangeiras ou ativos reais, o que pode gerar um padrão explosivo nos preços e o abandono da moeda até mesmo como meio de pagamentos, devido a sua desvalorização extremamente veloz e atroz. Qualquer choque externo ou interno, mudanças nas expectativas sobre a sobrevivência da moeda e solvência do setor público poderão contar com a liquidez da dívida pública para amplificar corridas contra a moeda. Para Belluzzo e Almeida (2002), a vinculação da dívida pública ao overnight durante as décadas de 80 e 90 exacerbou os problemas do balanço de pagamentos, bem como, em larga medida, foi uma consequência desses problemas externos, em relação à liberdade de implementação da política econômica. Os problemas externos se tornavam ainda mais dramáticos com a possibilidade de a dívida pública rapidamente promover uma corrida cambial de grandes dimensões, o que levaria a uma hiperinflação aberta e ao enterro definitivo da moeda doméstica. 

Belluzzo e Almeida (2002) mostram que as fugas de capitais podem comprometer o papel da moeda nacional como padrão de avaliação da riqueza, enquanto num momento de crise o mercado de capitais internacionais praticamente se fecha para os países da periferia, conforme descrito nos ciclos internacionais de liquidez. As fugas de capitais obrigam que a política monetária se volte à manutenção das funções da moeda, evitando a ruptura do padrão monetário e a dolarização completa da economia. Neste contexto, a dívida pública, cada vez mais líquida, cumpre seu papel na desestabilização potencial da moeda, pois pode se converter rapidamente em poder de compra e ampliar a fuga para moeda externa ou para ativos reais. Em momentos de grande incerteza, o financiamento da dívida pública é garantido pelo aumento de sua liquidez, corriqueiramente da redução dos prazos de vencimentos, ainda mais em momentos em que a crise monetária ameaça a própria a sobrevivência da moeda doméstica e, portanto, da razão de existir de uma dívida denominada nessa moeda. Além disso, as dúvidas quanto à sobrevivência de uma moeda colocam sérios limites tanto a políticas monetárias, quanto à gestão da dívida pública.

Quanto à dívida pública, cabe apenas ressaltar como os rentistas reagiram ao risco da desvalorização. Foram dois os métodos principais: o encurtamento dos prazos aceitos para adquirir títulos de governo (um deslocamento da “preferência pela liquidez”) e a efetivação de operações de arbitragem nos mercados de ativos, sobretudo no mercado paralelo de dólar, mas também nos de ativos reais.

(Belluzzo & Almeida, 2002, p. 135)

O caso brasileiro fornece importantes insights sobre os limites e os riscos que envolvem a gestão da política fiscal. A criação da moeda indexada, embora tenha preservado a moeda nacional, colocou a gestão macroeconômica em limites estreitos, uma vez que a riqueza financeira concentrada em prazos extremamente curtos se constitui numa constante ameaça de crise monetária derradeira.

Exerciam, assim, os possuidores de riqueza mobiliária, um enorme poder de dissuasão sobre a política monetária e de juros, mediante a ameaça de rápidas mudanças de posições, com efeitos explosivos sobre os preços dos ativos. Essa capacidade de gerar grave instabilidade passaria a ser a marca registrada da década, e não estava refletida apenas na evolução ou nas dimensões, em termos absolutos e relativos, do endividamento público nos anos mais difíceis da crise.

(Belluzzo & Almeida, 2002, p. 135)

A despeito das críticas, das quais subscrevemos algumas delas, a MMT permite compreender que o gasto público é sempre uma emissão monetária, um acréscimo nas reservas dos bancos comerciais no Banco Central. Esse fator torna evidente a criação de um mercado potencial para o financiamento de qualquer volume de deficit público, no qual o gestor da dívida pública pode adequar as características dos títulos ofertados para atender ao mercado. Contudo, a criação de liquidez pela política fiscal não é livre de consequências, pois pode ampliar as vulnerabilidades externas, facilitar fugas de capitais e crises financeiras e monetárias, caso não seja devidamente enxugada por títulos de dívida pública com perfil adequado. 

Deste modo, podemos recolocar a questão da política fiscal e da gestão da dívida pública como um problema de estrutura dos passivos públicos, que passam a ter uma tarefa de restringir ou encarecer a obtenção de liquidez para apostas especulativas contra a moeda, enquanto o montante total da dívida e do déficit público deixam de ocupar o lugar das preocupações centrais sobre o tema.

Dentro deste arcabouço, na próxima seção mostraremos que a utilização das operações compromissadas para o enxugamento estrutural de liquidez pelo Banco Central do Brasil permite ao mercado determinar a oferta de títulos de prazos reduzidíssimos e de altíssima liquidez, o que dificulta a obtenção de um perfil de dívida pública desejável, com características que dificulte a ocorrência de fugas de capitais e crises monetárias. 

4.              As operações compromissadas do Banco Central e a estrutura da dívida pública

Nesta seção, será mostrado como a implementação da política monetária brasileira, com predomínio das operações compromissadas do Banco Central, com menor importância das vendas definitivas de títulos do Tesouro Nacional e outros mecanismos, acaba dificultando a melhora do perfil da dívida pública.

 O fato é que a autoridade monetária se defronta com um mercado interbancário líquido, com um estoque enorme de operações com o Banco Central e expressivo volume de operações diárias entre os bancos[2]. Para o enxugamento dessa enorme liquidez, o Banco Central utiliza preponderantemente as operações de mercado aberto, que podem ser divididas entre as operações compromissadas e as operações definitivas.

As operações compromissadas podem ser definidas como operações com acordo de reversão, em que a transferência de títulos é temporária, com prazo e preço de retorno definidos. Para reduzir a liquidez do mercado e elevar a taxa de juros, o Departamento de Mercado Aberto (DEMAB) do Banco Central realiza o compromisso de recompra dos títulos em data futura fixada por um juro estabelecido previamente (a última compromissada de rentabilidade pós-fixada foi registrada nas Notas Econômico-Financeiras para a Imprensa de Mercado Aberto em abril de 2005).

Nas operações de mercado aberto definitivas, o Banco Central vende os títulos públicos do Tesouro Nacional de sua carteira ao mercado, que passa a deter sua posse definitiva e credita os valores na conta de reserva do banco comercial no Banco Central. Dessa forma, as vendas de títulos públicos federais pelo Banco Central reduzem os depósitos de reservas bancárias e a liquidez do sistema financeiro. Em sentido oposto, as compras de títulos públicos pelo Banco Central aumentam os depósitos nas contas de reservas bancárias, uma vez que é necessário o pagamento pelos títulos públicos adquiridos.

O enxugamento de liquidez estrutural com operações definitivas de títulos públicos é apontado como prática corrente pelos principais bancos centrais do mundo para o enxugamento de aumento de liquidez estrutural (Federal Reserve, 2005; Gray & Talbot, 2006; Bindseil, 2014.

No entanto, o Banco Central do Brasil tem nas operações compromissadas o cerne operacional da política monetária. Em dezembro de 2016, o saldo das operações compromissadas do Banco Central chegou a R$ 1,26 trilhão (ver Gráfico 2), dos quais R$ 985 bilhões possuem prazo máximo de 3 meses (ver Gráfico 3), mostrando o caráter de curto prazo dessas operações no Brasil, exacerbando ainda mais a liquidez estrutural do mercado brasileiro. 

Gráfico 2 – Saldo de Operações de Compromissadas (em R$ bilhões)

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Banco Central do Brasil  

                            

Gráfico 3 – Compromissadas de Curto Prazo (R$ Bilhões)                                             

  Até 13 dias                 Até 3 meses

 Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Banco Central do Brasil

O grande elemento estrutural de aumento de liquidez no sistema que exigiu a emissão das compromissadas foi o aumento das reservas internacionais (Gráfico 4). Quando o BC adquire alguma moeda estrangeira, há um aumento na base monetária que, caso não seja enxugado, levará a uma redução na Selic. Segundo o BCB (2018), de 2000 a 2017, o estoque de compromissadas cresceu o equivalente 16,2% do PIB, dos quais as operações com reservas internacionais responderam por 14,9% do produto. O acúmulo de compromissadas pode ser dividido em duas fases: a primeira, que vai de 2004 até a crise financeira internacional em 2008, se deve às operações de esterilização das operações de compra de reservas internacionais, que ampliam a base monetária, e a segunda começa em 2014, quando a política de superávits primários se encerra na prática, gastos públicos passam a ampliar a base monetária e há aumento nos juros das próprias compromissadas (BCB, 2018).

É importante observar que, ao enxugar a aquisição de reservas internacionais com operações compromissadas, o Banco Central gera um descasamento do prazo entre seus ativos e passivos, uma vez que o prazo médio das compromissadas é de 21 dias e o das reservas internacionais era de 1,93 ano em dezembro de 2016, descasamento que é amenizado pela alta liquidez dos títulos que compõem as reservas no mercado internacional. Nesse aspecto, dado o descasamento e o caráter estratégico de longo prazo das reservas, seria de esperar que o Banco Central acumulasse passivos de melhor qualidade/maior prazo. Além do descasamento de prazos, há também um descasamento de moedas, as reservas denominadas em dólar e as compromissadas em reais. 

Gráfico 4 – Reservas Internacionais (US$ milhões – eixo da esquerda) e Operações Compromissadas (R$ milhões – eixo da direita)

                                   Reservas                                      Compromissadas

 Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Banco Central do Brasil

A maior parte das compromissadas (R$ 716 bilhões em dez/16) é rolada no dia seguinte a cada reunião do Comitê de Política Monetária (COPOM) com prazo até a próxima reunião, com taxa ligeiramente abaixo da Meta Selic, operação conhecida no mercado pelo jargão de COPOM-COPOM. Como a taxa de juros já está definida entre as reuniões do COPOM, não existe porque falar em risco de preço dessas operações. O Banco Central ainda emite compromissadas mais longas (com prazos de 5 a 7 meses), que são ofertadas às sextasfeiras, com comunicado divulgado às quintas-feiras com os prazos das operações ofertadas e quais papeis serão aceitos como colateral para as compromissadas. No entanto, o saldo dessas compromissadas em dezembro de 2016 era de R$ 108,6 bilhões, ficando bem abaixo do saldo das compromissadas mais curtas.

Além do curto prazo das operações compromissadas, um problema estrutural do financiamento da dívida pública brasileira são os títulos de indexação financeira, com preços insensíveis à variação das taxas de juros, o que permite vendas maciças destes títulos sem perdas de valor em direção à movimentos especulativos. O financiamento da dívida pública, no Brasil e em outros mercados de menor desenvolvimento, possui a tendência para o curto prazo de vencimento dos títulos de dívida pública e para a elevada aversão ao risco, consubstanciado nos títulos de indexação a taxa de juros de curto prazo e na atrofia do mercado de crédito privado, que permanece encurralado em suas modalidades mais simplórias, com prazos curtos e baixo risco.

O Tesouro Nacional tem como alguns dos seus objetivos na gestão da dívida pública a pré-fixação, o aumento da maturidade média da dívida e a redução da proporção de títulos no curto prazo. No Gráfico 5 e no Gráfico 6, é possível verificar um relativo sucesso na estratégia de substituição de títulos com taxas flutuantes, com a queda na participação de títulos como as LFTs no estoque da dívida, cuja participação no total da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna (DPMFi) caiu de 51,6% em janeiro de 2006 para 29,43% em dezembro de 2016. Nesse período, houve um aumento na participação dos títulos préfixados (LTNs em especial) de 26,70% para 36,88%. Os títulos indexados à inflação, como as NTN-Bs (IPCA), passaram de 19,15% para 33,18%.

Gráfico 5 – DPMFi em Poder do Público (%)

 Fonte: Elaboração Própria a partir dos dados do STN 

Gráfico 6 – DPMFi em Poder do Público (R$ bilhões)      

Fonte: Elaboração Própria a partir dos dados do STN 

Ademais, essas emissões do Tesouro Nacional foram exitosas em manter o alongamento do prazo médio da dívida pública mobiliária federal interna. Em dezembro de 2014 e no mesmo mês de 2016, o prazo médio da DPMFi aumentou de 4,28 anos para 4,44 anos, patamares próximos aos registrados pela dívida pública americana na primeira década deste século, que mostra a criação de um mercado para títulos públicos de longo prazo. 

Em contraposição à melhora do perfil da dívida pública durante o biênio recessivo de 2015/2016, a proporção de títulos vinculados à Selic subiu de 19,62% para 29,43%. Esse é um problema importante, uma vez que a elevada proporção de títulos de indexação financeira reduz a eficácia da política monetária, aumenta a imprevisibilidade na gestão da dívida pública e dificulta a criação de um referencial para o mercado de crédito privado de longo prazo, ao mesmo tempo que permite a aposta contra a moeda praticamente sem custos nos movimentos para se desfazer dos títulos. Além disso, as compromissadas constituem um fator que praticamente impediu qualquer evolução na composição da dívida pública no tocante à pré-fixação. A participação somada de compromissadas e LFTs na DBGG passou de 38,73% em dez/04 chegando a 39,04% em dez/16 (Gráfico 7)[3], o que mostra a persistência do vício pela liquidez na alocação dos portfólios dos investidores brasileiros. 

Gráfico 7 – Participação na DBGG (%) 

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Banco Central do Brasil.

Nesse artigo, aponta-se que as operações compromissadas possuem características muito semelhantes às LFTs. Por isso, o mercado tem a sua disposição ativos alternativos para a tentativa do Tesouro Nacional de reduzir a quantidade de LFTs em sua carteira. De fato, há uma concorrência entre as LFTs e as operações compromissadas, que reduz o raio de manobra do Tesouro Nacional em colocar ativos com características distintas daqueles demandados pelo mercado. 

Keynes (1936) aponta como características essenciais dos ativos a liquidez (l), o custo de carregamento (c) e o rendimento (q). O fato é que a compromissadas possuem altíssima liquidez assim como as LFTs, uma vez que a maioria delas é rolada num prazo curtíssimo de 1 dia ou num prazo de 45 dias, nas operações “COPOM-COPOM”. Além disso, o custo carregamento das compromissadas é baixíssimo para as instituições financeiras que operam no mercado de reservas bancárias e possuem praticamente o mesmo rendimento das LFTs, uma vez que dificilmente ultrapassam os décimos de porcentagem nos juros anuais de diferença em relação á taxa Selic. Nesse sentido, a nova legislação que permite que o Banco Central aceite depósitos remunerados dos bancos comerciais não deverá alterar o cenário, uma vez que as suas propriedades essenciais (l, c, q) são as mesmas das compromissadas

Os títulos públicos costumam ser substitutos próximos à moeda, fornecendo liquidez aos agentes e garantindo, no caso brasileiro, uma boa rentabilidade. Assim, a emissão de compromissadas com características semelhantes a um dos mais líquidos ativos da economia, as LFTs, acaba concorrendo com os títulos do Tesouro Nacional na alocação dos portfólios dos agentes. Mesmo que o Tesouro Nacional não role a totalidade de LFTs do mercado para melhorar o perfil da dívida, os agentes podem forçar a queda da taxa de juros no mercado interbancário até que o Banco Central aja da forma esperada e oferte as compromissadas desejadas. Desse modo, embora a gestão do Tesouro Nacional consiga melhorar o perfil da dívida de sua carteira, o mesmo poderá não ocorrer com o perfil da dívida do setor público como um todo. Com isso, embora o Banco Central não tenha a capacidade de restringir a capacidade de financiamento do Tesouro Nacional, a Autoridade Monetária acaba influenciando na carteira de títulos que poderá ser ofertada, o que dificulta as metas do Tesouro de pré-fixação e alongamento da dívida. 

Dessa forma, a preferência pelas operações definitivas para atender os movimentos estruturais de liquidez devolveria à gestão da dívida pública o papel estratégico na definição da curva de juros de longo prazo e sobre a estrutura de seus passivos. A definição da estrutura de taxas de juros passa a depender somente das ofertas do Tesouro, que atuará sobre todo o estoque de dívida incluindo os títulos vendidos pelo Banco Central, mas de responsabilidade do Tesouro. O atendimento da demanda do mercado deixa de contar com um ofertante de última instância para ativos líquidos e sem risco como as operações compromissadas, das quais a quantidade ofertada pode ser determinada pelas preferências dos agentes privados.

5.             Considerações Finais

Esse artigo procurou mostrar que a relação entre o Banco Central do Brasil e o Tesouro Nacional no período entre 2004 e 2016 foi marcada pela falta de sinergia, o que dificulta a obtenção de um perfil da dívida pública desejável, que reduza as possibilidades de ocorrência de fugas cambiais ou crises cambiais e monetárias. 

A MMT mostra que não há restrição financeira ao gasto público, que seria limitado apenas no lado real da economia, especialmente pelos níveis de emprego. Além disso, essa interpretação teórica ressalta o caráter do gasto público como emissão monetária, o que evidencia os dilemas keynesianos da moeda e sua relação com o financiamento da dívida pública. Enquanto a moeda soberana existir, o gasto público produzirá a demanda pelos títulos que poderão ser emitidos com diversas estruturas. A questão essencial não é “se” o gasto público será financiado, mas “como” será a estrutura da dívida pública resultante ex post, sob quais condições os agentes renunciarão à moeda em troca de títulos públicos préfixados e de longo prazo e, portanto, de maior risco. Nesse sentido, a qualidade da dívida pública importa e a sua função é muito maior do que sugerida pela MMT de mera determinação das taxas de juros e ajuste do volume de investimentos.

A drenagem da liquidez dessas reservas bancárias originadas nos gastos públicos com títulos públicos pré-fixados e de prazos longos é ainda mais importante em economias periféricas, sujeitas a uma posição subordinada na hierarquia internacional das moedas e com o processo de acumulação de capital muitas vezes ligado à lógica internacional. A experiência brasileira com a crise crônica dos anos 80 e 90 mostra que uma dívida pública líquida, que muitas vezes pode ser caracterizada como uma quase-moeda, facilita a ocorrência de fugas de capitais, crises cambiais e monetárias e reduz o espaço para as políticas fiscais e monetárias nessas crises, o que tende a exacerbar ainda mais os seus efeitos recessivos. 

A opção do Banco Central de operacionalizar a política monetária fundamentalmente por meio das operações compromissadas permite ao mercado controlar a oferta dos ativos os quais deseja. Caso o Tesouro Nacional opte por não rolar integralmente as LFTs para melhorar o perfil da dívida, os investidores não serão obrigados a realocar seu portfólio ao longo da curva de juros ou aceitar uma maior exposição a riscos privados no overnight[4]. Para evitar uma queda da taxa básica de juros abaixo de sua meta, o Banco Central ofertará as compromissadas desejadas pelo mercado, ajudando a perpetuar as características perversas do perfil da dívida pública brasileira, em que pese as melhoras das últimas décadas.  

Nesse sentido, pode-se apontar uma falta de sinergia na relação Banco Central – Tesouro no período recente que comprometeu a melhora no perfil da dívida pública uma vez que os movimentos de alongamento de prazo do tesouro foram compensados pela emissão de operações compromissadas de curto prazo pelo Banco Central. 

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[1] Ferraz (2017) aponta que a redução da demanda por moeda nos anos 80 não resultou em perda da capacidade do Banco Central em determinar a taxa de juros, posto que a demanda por moeda migrou para os títulos públicos emitidos pelo Estado e ressalta que a origem da crise brasileira foi a crise da dívida mexicana de 1982 e o acesso restrito ao mercado internacional de capitais. Além disso, é criticada a concepção de Belluzzo e Almeida (2002) de crise fiscal, o que não faria sentido em economias emissoras de moeda soberana. A despeito das críticas, o ponto a ser analisado pelo presente artigo é a relação entre a estrutura dos passivos da dívida pública e as crises externas. 

[2] Segundo dados da Notas para Imprensa do Mercado Aberto do Banco Central, apenas entre os bancos, o volume médio diário das operações compromissada de 1 dia no sistema Selic era de R$ 1,06 trilhão em

Dezembro/16, com 6.397 operações. 

[3] No Gráfico 7, foi utilizada a metodologia de cálculo da DBGG pré-2007 por ser mais extensa e permitir a análise de um período maior.

[4] O aumento da exposição a riscos privados no overnight é uma possibilidade individual e não pode ocorrer para o sistema bancário como um todo. O incremento de recursos disponíveis no overnight implica redução na taxa de juros, o que exige que o Banco Central atinja sua meta. 

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