Guerra da Ucrânia, imperialismo e comunicação

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por César Bolaño

No interior da institucionalidade imperialista, a comunicação, enquanto sistema de legitimação, vem passando por uma transição fundamental em direção a um novo sistema global de cultura, baseado na internet, plataformas digitais e outros meios de comunicação mediada por algoritmos, que servem à regulação do conjunto, ao controle do trabalho, da opinião pública e à vigilância

O conflito entre Rússia e Ucrânia iniciado em fevereiro de 2022, no contexto da guerra do Donbas, iniciada após o golpe de Estado de 2014 e a consequente declaração de independência das repúblicas populares de Lugansk e Donetsk, é um momento crucial na crise estrutural do capital que expõe o complexo institucional e os atores que se articulam na organização e funcionamento do imperialismo. Um dos elementos fundamentais desse complexo é o sistema global de comunicação.

A situação atual do imperialismo guarda certas similitudes com o período da retomada da hegemonia americana (Tavares, 1997), no governo Reagan, após uma década de crise do dólar. Além do aumento das taxas de juros, redirecionando os fluxos de capital para os Estados Unidos e transferindo a crise para os países endividados do terceiro mundo e o leste europeu – onde o sistema soviético, que já enfrentava a sua própria crise estrutural, seria obrigado a responder ainda ao desafio econômico imposto pelo projeto “guerra nas estrelas”, provocando a derrocada do regime e do conjunto do que Robert Kurz (1991) chamou “socialismo de caserna” – e de medidas fiscais, foi fundamental o enquadramento político dos seus sócios europeus, por parte da potência americana, patente no veto à construção do gasoduto transiberiano, entre a Rússia e a Alemanha. Três movimentos se seguirão, fundamentais para a formação da conjuntura atual:

1 As lideranças nazistas ucranianas que, ao contrário do que ocorreu com as alemãs, foram poupadas nos julgamentos de Nuremberg, retornaram ao país, onde voltaram a organizar-se enquanto força de ataque, que teria um papel crucial no golpe de 2014, que deslocou a Ucrânia da área de influência da Rússia para a da União Europeia.

2 A Otan, ao invés de extinguir-se, como ocorreu com o Pacto de Varsóvia que, ao desfazer-se, liberou uma série de países para integrar-se à aliança ocidental, cresceu para o leste, inclusive pela incorporação dos novos países surgidos da destruição, que ela própria promoveu, da antiga Iugoslávia.

3 A China, da sua parte, implementou um arrojado movimento de reestruturação, iniciado durante o governo Nixon, que tratou de aproximar-se do país – aproveitando o interesse do presidente Deng Xiaoping na implantação do plano de reformas que levaria ao modelo de “um país, dois sistemas” – para inserir uma cunha nas relações entre o gigante asiático e a União Soviética. O sucesso do plano levaria a China à condição de grande concorrente dos Estados Unidos no início do século XXI.

A reestruturação produtiva iniciada nos anos 1980 completa o movimento. O caso das reformas e privatizações das telecomunicações mundo afora, por pressão dos Estados Unidos, após as mudanças regulamentares lá ocorridas em 1984, é muito representativo, pois trata-se de um dos três setores da convergência tecnológica (ao lado da informática e da radiodifusão), que estão na base da expansão do paradigma digital, elemento chave da terceira revolução industrial, tanto no que se refere à reestruturação industrial, com a implantação dos sistemas de produção flexível de base microeletrônica, quanto ao surgimento e expansão da internet e das plataformas digitais, com impactos sobre o mundo do trabalho e o conjunto da economia e da sociedade.

Informação e comunicação adquirem, nessas condições, uma centralidade inusitada no modo de produção, ao tempo em que as formas de legitimação se alteram, com a implantação de um novo sistema global de cultura (Furtado, 1978), fundado em formas de comunicação extensamente horizontalizadas e interativo, cuja aparência democrática esconde a essência de sistema técnico destinado ao controle e à vigilância em escala massiva e global, com uma capacidade de manipulação ampliada e concentrada em poucas empresas norte-americanas. Enquanto a Indústria Cultural do século XX se estruturava em torno dos sistemas de televisão regulados pelo Estado nacional, ou diretamente operadas por ele, sob o princípio, internacionalmente reconhecido, da soberania nacional – ainda que a produção de conteúdo fosse em grande medida concentrada no oligopólio global de Hollywood e da indústria fonográfica norte-americana –, o novo sistema apresenta-se como instrumento que o imperialismo controla diretamente na sua totalidade e em cada uma das suas partes.

A cobertura da intervenção russa na Ucrânia, articulando a produção e distribuição de conteúdo informativo, desde as grandes agências de notícias até a sua replicação nas redes sociais, passando pela ação da mídia hegemônica e pelas ações de censura das plataformas digitais, nos diferentes países, mostra o elevado grau de integração do sistema e sua capacidade de massificação de uma única narrativa. É claro que em ambos os lados do conflito, os sistemas de comunicação vinculados subordinam-se a interesses superiores, políticos e militares, mas é flagrante a superioridade do sistema integrado do imperialismo, que abrange as grandes agências de notícias, as plataformas digitais norte-americanas e toda a mídia hegemônica mundial, amplamente capilarizada. Toda essa estrutura tem sido usada, desde, ao menos, o final do século passado, em estratégias conhecidas como de guerra híbrida, como nas chamadas primaveras árabes e revoluções coloridas – entre as quais inclui-se o golpe de Estado na Ucrânia em 2014 – e em processos de lawfare, como os que ocorreram no Brasil e por toda a América Latina contra a chamada onda rosa da primeira década do século XXI.

O avanço da economia chinesa, o soerguimento da Rússia, iniciativas como a dos Brics, governos reformistas da América Latina, a integração da economia sul-americana, o fracasso da política neoliberal, com suas recorrentes crises, desde os anos oitenta do século passado, culminando, até aqui, com a grande crise de 2008, tudo isso traz à tona a crise de hegemonia que se imaginava superada. A escalada da crise para o plano político e militar, a derrota no Afeganistão depois de vinte anos de ocupação militar, a incapacidade de resolver a seu favor a situação do Oriente Médio, como explicita o caso da Síria, o fracasso das políticas de sanções econômicas contra inúmeros países insubordinados, tudo indica uma tendência à débâcle que deveria ser o tema dos partidos e organizações de esquerda.

Seria necessário neste momento, não neste texto, retomar os debates que, nos anos trinta do século passado, opunham perspectivas marxistas ditas objetivistas e subjetivistas em relação às possibilidades de superação do capitalismo, herdeiras das discussões a respeito da posição da classe operária diante da primeira guerra mundial, que dividiram os trabalhadores nas duas tendências representadas pela social-democracia alemã e o bolchevismo. O debate sobre a tensão entre possibilidades objetivas, dadas pelo próprio desenvolvimento das forças produtivas, de colapso do sistema e, de outro lado, a ação consciente da classe trabalhadora, sem a qual a tendência ao colapso se resolve não numa revolução socialista libertadora, mas na pura barbárie, esse debate chegou a ser retomado nos anos setenta mas foi deixado de lado a partir dos oitenta, sob o influxo, no campo intelectual, do pensamento pós-modernista e de toda uma extensa família de novos revisionismos que acabam por referendar uma perspectiva objetivista extrema, de progresso automático, pelo simples desenvolvimento das forças produtivas.

A classe trabalhadora, da sua parte, sofreu e vem padecendo por uma derrota histórica de grandes dimensões, em duas frentes combinadas: as políticas neoliberais, que retiram direitos historicamente conquistados, e a reestruturação produtiva, que provoca uma mudança radical na própria estrutura da classe, através de uma extensa robotização e a subsunção do trabalho intelectual (Bolaño, 2002), segmentando-a em duas partes, uma das quais submetida a uma precarização sem precedentes, enquanto a outra perde a autonomia de que chegou a desfrutar no período de vigência do regime de acumulação taylorista-fordista-keynesiano. Nessas condições, a classe trabalhadora não se tem apresentado como força contra hegemônica diante da profunda crise sistêmica, potencializada pela pandemia do coronavírus. À falta de uma opção revolucionária desse tipo, avançam os movimentos de classe média, as revoluções coloridas e a extrema-direita mundial.

Na Ucrânia, a integração das milícias nazistas, a partir do golpe de 2014, ao regime político, serve de apoio a uma situação de permanente tensão, que inclui a manutenção, por oito longos anos de uma guerra de baixa intensidade, mas nem por isso menos mortífera, às portas de uma Rússia que procurava, desde a chegada de Vladimir Putin ao poder, recuperar-se das derrotas sofridas desde a derrocada da União Soviética, avançando, especialmente na atualização da sua estrutura militar, setor em que, como o aeroespacial, preserva a dianteira tecnológica, ainda que, no que se refere ao desenvolvimento capitalista em geral, tenha-se tornado essencialmente, nas últimas décadas, um (grande) exportador de matérias primas, petróleo e gás.

As provocações da autodenominada aliança ocidental, por sua vez, com o anúncio de uma iminente incorporação da Ucrânia à Otan, explica-se completamente pela ótica geopolítica da polarização entre potências atlânticas e eurasianas, que acabou sendo adotada pelo imperialismo quando decidiu avançar com a Otan para o leste. Do seu ponto de vista, a guerra na Ucrânia é interessante por vários motivos:

1 Desde o final da guerra fria e a desintegração da Iugoslávia, a Otan, como afirmou o chanceler Celso Amorim, é uma aliança militar em busca de um inimigo: o terrorismo islâmico, a corrupção, regimes antidemocráticos selecionados, supostamente desrespeitadores dos direitos humanos. A aliança eurasiana, por fim, repõe o problema em seus termos clássicos, justificando a existência da máquina de guerra ocidental, que pode assim gastar seus estoques, dinamizando a indústria bélica, especialmente dos Estados Unidos.

2 Para estes, o ataque à Rússia serve principalmente à necessária unificação do bloco imperialista sob o seu comando, visando a retomada da hegemonia, como ilustra, mais uma vez, o veto ao gasoduto, agora o Nord Stream 2, finalmente adotado pela Alemanha que, como a França e o conjunto da União Europeia, é impelida a aceitar condições que ferem seus interesses econômicos imediatos, beneficiando, ao contrário, a indústria de gás dos Estados Unidos e suas petroleiras.

3 Nesse sentido, têm razão aqueles que falam em uma reação da potência imperialista ao desafio representado pela aliança eurasiana, lembrando que a Rússia representa apenas o início de um movimento que visa, em última instância, o seu principal concorrente no plano econômico, a China, contra a qual também brande ameaças de balcanização em nome da defesa de identidades oprimidas, direitos humanos e democracia.

É interessante examinar o problema usando o conceito de poder econômico de Furtado (1967), definido como a capacidade dos agentes que o detém de, através de suas ações, promover mudanças de parâmetros que obrigam os demais agentes a reposicionar-se, com o que, logra ampliar a sua participação no excedente, lembrando que se trata de uma questão de hierarquia, em que o poder é assimetricamente distribuído, sendo que o movimento daqueles que não dispõem de nenhum poder será meramente adaptativo. No caso em exame, por exemplo, as ações dos Estados Unidos, desde o fim da União Soviética, foram no sentido de romper as resistências dos seus aliados e das vozes dissidentes internas em relação à opção pela expansão da Otan, que culmina com a construção, hoje, de uma unidade do “ocidente” em relação às respostas da Rússia, um agente com um grau de poder que o capacita a realizar movimentos reativos que alteram também os parâmetros, obrigando a novos ulteriores reposicionamentos.

A submissão dos países europeus no interior do bloco imperialista significa que estes deverão arcar com o maior sacrifício na guerra econômica decretada contra a Rússia, que tem fortes impactos reversos,[1] para não falar na crise humanitária às suas portas. Assim, a Europa torna-se mais dependente, perdendo graus de liberdade e, portanto, poder econômico. É claro que o mesmo poderia ser dito em relação à Rússia, que, em resposta aos inéditos pacotes de sanções econômicas, deverá reforçar laços com a China, embora neste caso se trate basicamente de um reforço do bloco eurasiano como associação estratégica de caráter defensivo. Até que ponto essa associação poderá barrar a asfixia econômica a que se promete submeter a Rússia, através de bloqueio econômico radical, sequestro de reservas, exclusão de acesso ao sistema SWIFT e ao sistema financeiro internacional, é uma questão em aberto. A adesão ao boicote por parte das grandes empresas oligopolistas ocidentais, inclusive no campo cultural e esportivo, mostra que se trata de uma ação do conjunto do capital monopolista, sob o comando da Otan e dos Estados Unidos da América, confirmando que, em conjunturas críticas, como a atual, os interesses do Estado, enquanto representante do conjunto da classe capitalista, são prioritários em relação aos interesses particulares dos capitais individuais ou, no caso, das nações capitalistas particulares na defesa dos seus capitais nacionais.

A tomada de consciência, pela classe trabalhadora, do seu papel diretor na superação do capitalismo sempre será dificultada pelos revisionismos de todo tipo e pelos feitiços e trapaças que maneja o capital, o que inclui a existência de uma indústria da consciência, elemento central para garantir o controle da opinião pública internacional. A guerra da propaganda se apresenta então com toda evidência, sem nenhum escrúpulo: proibição dos meios de comunicação russos na Europa, extensivo, no caso das plataformas digitais, ao mundo todo; controle da informação que chega ao público, com o objetivo de legitimar uma narrativa única; censura, confusão, tendenciosidade na divulgação das notícias. Não é possível entrar nos detalhes nos limites deste artigo, mas é evidente que se abre aqui todo um horizonte de estudos no campo da comunicação.[2]

No interior da institucionalidade imperialista, a comunicação, enquanto sistema de legitimação, vem passando por uma transição fundamental em direção a um novo sistema global de cultura, baseado na internet, plataformas digitais e outros meios de comunicação mediada por algoritmos, que servem à regulação do conjunto, ao controle do trabalho, da opinião pública e à vigilância. O campo acadêmico da comunicação se desenvolveu à sombra das guerras quentes e frias que marcaram o desenvolvimento capitalista ao longo do século XX. As reflexões sobre o imperialismo não podem excluir o conhecimento desse elemento chave das estratégias de poder, tanto na guerra como na paz.

Referências

BOLAÑO, César (2002). Trabalho intelectual, comunicação e capitalismo. In: Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. Rio de Janeiro, n. 11, dez., p. 53-78.

FURTADO, Celso (1967). Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

FURTADO, Celso (1978). Criatividade e dependência na civilização industrial. São Paulo: Paz e Terra.

KURZ, R. (1991), O colapso da Modernização. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1993.

TAVARES, Maria da Conceição (1997). A retomada da hegemonia norte-americana. In: TAVARES, Maria da Conceição; FIORI, José Luís (org.) (1997). Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes.

[1] Dados recentes podem ser encontrados na matéria de David Leonhardt e Ian Prasad Philbrick, no boletim The Morning, do New York Times, de 11-3-2022, intitulada The economic war.

[2] Uma versão mais longa deste artigo, citando algumas evidências nesse sentido e indicando linhas de pesquisa para a economia política da comunicação e da cultura, foi publicado na revista Outras Palavras, em 21-3-2002. In: Ucrânia: imperialismo e guerra da informação – Outras Palavras (acesso em 21-3-2002).

Publicado originalmente por Le Monde Diplomatique Brasil

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