Associação Brasileira de Economistas pela Democracia

Defesa da Democracia, da Soberania Nacional e do Desenvolvimento Inclusivo e Sustentável do Brasil

 

 
 
 

 

O acordo entre Legislativo e Judiciário e suas consequências para o futuro do país

10 de setembro de 2024

    

imagem: ABED

A grande imprensa, que fez vistas grossas em relação ao “orçamento secreto” urdido durante o governo Bolsonaro, como mecanismo de compra de apoio político de parte considerável do Congresso Nacional, vem rasgando elogios ao “acordo” selado entre o Judiciário e o Legislativo, com as bênçãos do Executivo. Mas será que há, realmente, motivos para tanto alarde? E o acordo é, de fato, um novo marco nas relações republicanas?
Vale lembrar que existe um procedimento para o orçamento, definido pela Constituição de 1988, visando democratizar e dar transparência às discussões, ao mesmo tempo em que define os papéis de cada poder. Cabe ao Executivo fazer uma proposta de orçamento ao Congresso. Antes de mais nada, é preciso entender o que é orçar, orçar é estimar receitas e despesas – esses números podem variar, a receita depende de vários fatores (desempenho geral da economia, que pode fazer crescer ou diminuir a arrecadação, eficiência tributária, combate a sonegação e outros), assim como a despesa (só para ficar em um exemplo recente aqui, as enchentes no Rio Grande do Sul esse ano geraram uma enorme quantidade de despesas não previstas, assim como qualquer aumento da taxa SELIC pelo Banco Central, já que o pagamento de encargos da dívida pública é o maior gasto do orçamento) – portanto, acompanhamento e ajustes sempre terão que ser feitos na previsão e na execução do orçamento. O Executivo propõe, o Congresso discute, emenda e aprova, com base no Plano Plurianual (o PPA, aprovado no primeiro ano de governo e orientador do orçamento e da gestão pelos seguintes quatro anos, três do governo em curso e um do governo seguinte) e na Lei de Diretrizes Orçamentárias, aprovada sempre no primeiro semestre do ano – com base nisso, é elaborada a Lei Orçamentária Anual, a LOA. Além de preparar o orçamento para o ano seguinte, o Congresso acompanha a gestão e pode aprovar alterações ao longo do ano, assim como fiscaliza (com o auxílio de seu órgão existente para isso, o Tribunal de Contas, que antes de um braço do Judiciário, é um órgão assessor do Legislativo) e aprova o orçamento executado. Grosso modo, esse desenho existe para todos os níveis administrativos, e é exatamente por isso que todos os legislativos (Congresso Nacional, Assembleias Estaduais e Câmaras de Vereadores) têm comissões de orçamento, que funcionam o tempo todo. Assim, o Legislativo já tem um enorme poder na definição do orçamento, formalmente, na estrutura existente. Aparentemente, o Legislativo quer fugir neste momento dos controles que ele próprio impõe ao Executivo.
É evidente que não se pode negar a importância de imposição de regras mais efetivas de transparência e de procedimentos de rastreabilidade dos recursos a serem encaminhados pelo Executivo federal aos entes subnacionais. Mas ainda paira no ar uma certa desconfiança se essas novas regras serão cumpridas, dada a inesgotável capacidade do Legislativo em “criar” saídas que burlam os mecanismos de controle do orçamento. Do lado do Executivo, a imposição de sigilos sobre atos que deveriam ser públicos, também autoriza pôr em dúvida se todo esse furor em busca de maior transparência é mesmo para valer.
De toda forma, sendo otimista, há que louvar iniciativas que estabeleçam um certo freio às chamadas “emendas PIX”, que se destinam, no mais das vezes, a atender aos interesses políticos localizados e, por vezes, meramente eleitoreiros de deputados e senadores, uma vez que esses recursos são pulverizados por meio de emendas não vinculadas a projetos formulados atendendo a critérios técnicos consistentes e com base no interesse público.
Por outro lado, sendo realista, o lado triste dessa questão é que, desmentindo mais uma vez que este seria o país do futuro, permanece o desafio que o Brasil até hoje não conseguiu vencer – o de formular um projeto de nação, na medida em que, na defesa de seus interesses paroquianos, os parlamentares insistem em afirmar que conhecem as necessidades de seus municípios melhor que todo o aparato técnico a disposição da União. Por conveniência, porém, esquecem-se de que, ao estilhaçar quase metade do orçamento federal, os diferentes interesses locais e a falta de eficiência na sua aplicação continuarão mantendo as profundas desigualdades regionais, impedindo o progresso do país enquanto Nação.
Esses parlamentares – que já controlam metade do Orçamento do país, segundo os ministérios da Fazenda e do Planejamento – também argumentam que a transferência de recursos federais para suas bases eleitorais consolida a democracia. Mas a que tipo de democracia eles se referem? Talvez seja aquela que, desde sempre, colocou os interesses do mandonismo local e das oligarquias regionais acima dos interesses maiores da Nação. O resultado desse processo espúrio, como se sabe, é a indefinição de responsabilidades, duplicação de esforços, a não diferenciação entre interesses privado e público, a ineficiência administrativa e a multiplicação de gastos perdulários. Não bastasse isso, a conversão de parte significativa da máquina administrativa – em nome da governabilidade – em feudos controlados por facções políticas interessadas em destinar recursos para suas clientelas, tende a fazer do Executivo federal um Poder com dificuldades para definir objetivos, prioridades e metas de médio e longo prazo.
Ainda, é preciso lembrar que essas emendas impositivas foram herdadas do governo anterior, quando eram denominadas de “orçamento secreto” e, posteriormente, de “emendas PIX”. Em ambos os casos os membros do Legislativo podiam obter recursos do Estado através de uma solicitação que tinha caráter de urgência e que destinava recursos para obras ou ações que ninguém debatia. Neste contexto, não era necessário informar o ente federativo beneficiário desses recursos e, tampouco, quem solicitava o benefício, constituindo-se em uma verdadeira “caixa preta”, que permitia que legisladores em conluio com governadores e prefeitos fizessem uso arbitrário do erário nacional, sem prestar contas a ninguém, nem ao Executivo, nem a Justiça e menos ainda aos cidadãos.
Foi para pôr um pouco de ordem, transparência e responsabilidade sobre os recursos destinados a essas emendas impositivas, que o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF) as suspendeu. Para tanto, seu argumento foi de que orçamento impositivo não pode ser confundido com orçamento arbitrário e que é um dever/poder do Executivo verificar, de modo transparente, se as emendas se encontram aptas para sua execução conforme os requisitos técnicos já estabelecidos na legislação e em normas específicas.
Na reunião referida ficou consignado que essas emendas poderão ser retomadas pelos parlamentares nos próximos dias, mas agora com a exigência de que elas se submetam aos critérios de transparência e rastreabilidade. O acordo firmado pelas partes sinaliza que as emendas continuarão com seu caráter impositivo, vale dizer, o governo terá a obrigação de efetuar as transferências com base em recursos federais, ainda que com a ressalva de que haja formas claras de controle, e que as emendas sejam vinculadas a projetos, bem como haja um cronograma para a distribuição desses recursos, sob a supervisão do Tribunal de Contas da União (TCU). O fato é que os valores dessas emendas são muito altos – estimativas preliminares apontam para alguma coisa acima de R$ 50 bilhões – e os mecanismos de fiscalização para a execução dos gastos em cada localidade são, até o presente momento, bastante débeis.
De todo modo, esta crise em torno das emendas parlamentares do orçamento é a renovação de um conflito que se arrasta há tempos e tem relação com as prerrogativas que o Congresso se autoconcedeu de decidir em que gasta o dinheiro público e que modelo de pagamento das emendas deve ser adotado no futuro. Em uma palavra, o Brasil vive uma espécie de “parlamentarismo disfarçado”, o que retira do Executivo a capacidade de investimento em áreas que ele considera, e foram escolhidas pela população na eleição de 2022, como prioritárias: saúde, educação, infraestrutura, moradia.
Se comparado com o resto dos países do bloco da OCDE – à qual o Brasil, no governo Temer pediu para se integrar plenamente – ele é o único país que permite que o Legislativo defina o que será feito com uma parte do orçamento, pois o padrão da maioria dos países do grupo é que o orçamento é tipicamente uma função do Executivo. A importante percentagem obtida atualmente pelo Congresso para financiar as “necessidades” de seus membros, é a expressão direta do enorme poder que foi sendo adquirido pelo Legislativo nos últimos anos, o que reforça a ideia de que existe no Brasil um parlamentarismo camuflado, no qual os Poderes Executivos e Judiciário tentam, geralmente de forma infrutífera, estabelecer contrapesos e barreiras a este poder. Tal situação decorre, em grande medida, das características do sistema presidencialista vigente no país. Desde a redemocratização, se tem produzido um fenômeno no qual os presidentes quase nunca possuem maioria no Congresso e, por isso mesmo, precisam promover pactos com outros setores, através de coalizões para além das do momento eleitoral, em nome da governabilidade.
Isto gera um verdadeiro estrangulamento da capacidade do Poder Executivo em implementar políticas públicas e definir prioridades do gasto, uma vez que os orçamentos a elas vinculados somente são viabilizados por meio de grandes acordos com uma base que lhe outorgue a maioria, embora essa maioria seja geralmente instável e gelatinosa, e que cobra um preço alto em troca da sua “lealdade”. Assim, o governo está sempre à mercê dos interesses de conglomerados e bancadas (ruralistas, empresariais, evangélicas, da segurança, da saúde privada) dos partidos fisiológicos da coalizão ou dos interesses particulares de cada deputado ou senador, que necessitam transferir recursos da União para projetos paroquiais de seus currais eleitorais, como uma estratégia para manterem-se no parlamento.
A consequência é o congelamento das ações do governo e uma redução expressiva do gasto social, porquanto descontando os gastos obrigatórios (salários dos servidores, provisão da seguridade social, gastos administrativos) o Executivo conta com poucos recursos orçamentários para direcioná-los às prioridades e necessidades mais urgentes da Nação. Essa situação de carência orçamentária acirra o debate sobre a necessidade de reduzir ainda mais a máquina pública, debate esse que se coloca como prioridade pelo próprio Ministro da Fazenda, que utiliza o argumento de otimização do gasto para justificar os cortes aplicados a programas antes emblemáticos do governo do PT, como o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Sistema Único de Saúde (SUS), Farmácia Popular ou Cisternas para o Semiárido.
Em um contesto de empoderamento sustentado do Legislativo, os deputados sabem que, para obter os fundos necessários para executar obras em seus respectivos currais eleitorais têm, necessariamente, que contar com o beneplácito de personagens que mandam e desmandam nos espaços confortáveis do Congresso.
Diante desse quadro, cabe novamente a pergunta: há algo para ser comemorado como resultado da reunião dos representantes dos Três Poderes da República em que foram analisadas as chamadas emendas impositivas?
Há uma tênue esperança de que, com a crise existente entre os Três Poderes neste último período, se apresenta a possibilidade de que as instituições democráticas sejam capazes de superar essa grave falência do sistema político brasileiro que compromete o futuro do país e de seu povo.

Grupo de Análise dos Impactos da Crise

Associação Brasileira de Economistas pela Democracia – ABED

Equipe Técnica: Ademir Figueiredo, Adhemar Mineiro (Coordenação), Antônio Rosevaldo Ferreira da Silva, Eron José Maranho, Jaderson Goulart Junior, José Moraes Neto e Juarez Varallo Pont.

 

 

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