Ajustamentos Ortodoxos e Heterodoxos

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Entender o que significa essa disputa de modelos é fundamental para acompanhar o que ocorre nas duas principais economias da América do Sul

Por Maria Luiza Falcão Silva*

Duas manchetes ocuparam os principais jornais na terça-feira, 12 de dezembro. O anúncio, por Luís Caputo, novo ministro da economia da Argentina, das primeiras medidas do plano de ajuste econômico do governo de Javier Milei, e a fala de Lula, presidente do Brasil, perante o Conselhão (Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável)  de que  “se for necessário este país fazer endividamento para este país crescer, qual o problema? De você fazer uma dívida para produzir ativos produtivos para este País?”

Trata-se de duas perspectivas inconciliáveis sobre como as autoridades competentes devem atuar para estabilizar economias que enfrentam processos inflacionários, crescimento pífio e déficits fiscais considerados pelo “mercado” como “altos” e “arriscados.”

Para a Argentina, em situação bem mais complexa do que o Brasil, experimentando uma inflação anual em torno de 150% e um endividamento elevado, a proposta do governo de Javier Miley não poderia ser mais ortodoxa. 

O programa de Lula vai no sentido oposto, propondo um ajustamento teoricamente heterodoxo.

Entender o que significa essa disputa de modelos é fundamental para acompanhar o que ocorre ou pode vir a acontecer nas duas principais economias da América do Sul.  Estão em jogo duas visões de como enfrentar os problemas e dos custos que a sociedade terá que suportar.  

Os adeptos do ajustamento ortodoxo, a la Argentina, entendem que cortando os gastos diretos (fiscais) e /ou com apertos de liquidez (taxa de juros elevadas, diminuição do crédito e outros controles do agregado monetário) o nível de atividade econômica cairia, levando à recessão e ao desemprego. Defendem que isso ocorreria no curto prazo, mas implicaria no médio prazo em queda da inflação, por queda no consumo e renda das famílias e retração dos gastos e dos investimentos públicos. Quando mercadorias deixam de ser vendidas, os preços são reajustados para baixo. O novo governo acena com diminuição no número de ministérios para a metade, assim como nos gastos com educação, saúde, segurança púbica, despesas com manutenção da infraestrutura. Subsídios diversos devem ser cortados em setores essenciais tipo transporte e energia. O Estado tem que ser mínimo, abrindo caminho para a iniciativa privada. Sofrerá uma população já fragilizada pela inflação, pelo desemprego, aumento da pobreza, baixa qualidade dos serviços públicos mais essenciais.  Essa é a via escolhida por Milei e pelo povo argentino que o elegeu e levou ao poder no último domingo (10). Não foi por ignorância.  Foi por opção. É o ajustamento neoliberal, pelas forças do mercado. Mercados não são justos. Com custos sociais muito elevados pode funcionar. “No hay plata” avisou Milei no dia de sua posse sob o clamor dos argentinos que lotaram a praça em frente ao Congresso. Era um acordo selado de estagflação (estagnação mais inflação) entre o novo governo e o povo que o levou ao poder. Pobres Hermanos que vivenciarão as consequências desse “austericídio.” A figura do “motosserra” cortando os gastos é perfeita. O corte dos gastos públicos anunciado pelo Milei equivale a 5% do Produto Interno Bruto (PIB) da Argentina.

 E, não tenham dúvidas, se houver contestação, ninguém deterá o Milei. O desfecho pode ser um regime autoritário para fazer cumprir seus delírios. Num primeiro momento a taxa de câmbio oficial anunciada por Caputo subirá de 365 para 800 pesos por um dólar, o que significa uma maxidesvalorização da moeda doméstica, incentivando os exportadores a trazerem os dólares, sem os quais a dolarização, também já anunciada, não poderá se concretizar. A desvalorização é um prenúncio da hiperinflação que está por vir.  

No Brasil, empossamos o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em primeiro de janeiro. Era promissor o projeto econômico e social que o elegeu.  Entre as propostas estavam: revogar o teto de gastos, propor uma reforma tributária colocando os ricos para pagarem impostos. O imposto de renda seria zerado para quem ganhasse até R$ 5 mil, os programas de transferência de renda ampliados, com os pobres entrando no orçamento de maneira mais contundente. O modelo de Preço de Paridade de Importação (PPI) usado pela Petrobras seria abandonado, os serviços públicos  priorizados, melhorados e estendidos, os arrochos salariais de educadores e outros grupos de servidores públicos seriam amenizados, etc.

Para implementar um programa dessa natureza, o Estado não pode ser mínimo, os mercados por si só não resolvem os conflitos distributivos. Terá que haver intervenção do Estado para implementar políticas de aumentos reais de salário, aumentos de programas sociais para combater a fome e pobreza. Programas assim requerem maiores gastos, sem a menor sombra de dúvida.  Obras de infraestrutura pública terão que ser estimuladas para gerar renda e emprego. A proposta de ajuste de Lula era uma estabilização heterodoxa, na convicção de que mercados livres  não resolvem os problemas de um País tão desigual quanto o Brasil.

A estabilização heterodoxa admite controles de preços e ampliação de gastos públicos A questão fiscal não se coloca como empecilho para o crescimento econômico.

A lógica é a seguinte. Os investimentos produtivos e os gastos com a máquina pública podem levar a um aumento inicial do déficit fiscal.  Contudo, à medida que a renda aumenta, o emprego cresce, o consumo público e privado também surfa nessa onda. A arrecadação fiscal melhora quando o país cresce tal que, no médio prazo, o déficit tende a se acomodar. A inflação cai se a produção aumenta incentivada pela maior venda de mercadorias e serviços e de melhores condições de crédito. Os juros não podem ser exorbitantes para não inibir consumo e investimentos e os bancos públicos, tal como o BNDES a Caixa Econômica, devem atuar para facilitar o crédito e prover financiamento para pequenas, médias e grandes empresas.

 Lula “ganhou, mas não levou as eleições”. Muitas foram as composições necessárias para sair vitorioso no pleito. Agora estamos amargando o resultado – um Congresso hostil que faz política chantageando ou boicotando as propostas que brotam no Executivo.

Embora muitos programas tenham sido   reeditados ou novos criados, nesse primeiro ano de governo – aumento do salário mínimo real; valores maiores para o Bolsa Família e ampliação do número de pessoas atendidas; retomada dos programas  Minha Casa Minha Vida e Mais Médicos; um novo Programa de Aceleração do Crescimento; inúmeras ações para preservação do meio ambiente; dentre outras iniciativas como a reforma tributária – o impasse principal permanece.

Para acalmar o “mercado” a Fazenda aprovou um novo arcabouço fiscal que é um teto de gastos repaginado. O Banco Central presidido por um ultraliberal, Roberto Campos Neto (“terrivelmente ortodoxo”) representante dos financistas, não deixa o crédito expandir. Taxa de juros altas persistem desestimulando a produção e o consumo.

O confronto com outras alas do governo que ocupam ministérios estratégicos para implementação do programa petista que venceu as eleições, em novembro de 2022, é inevitável.  Desembocamos num modelo híbrido de heterodoxia com ortodoxia que, por serem incompatíveis, ameaça nos paralisar.

Publicado originalmente no GGN.

*é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA. É membro da Abed.

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