Torções do processo de acumulação

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Está disponível o novo número da Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política

Apresentação pelo Comitê Editorial da revista

“Se alguma coisa há que marca de modo indelével estas primeiras décadas do século XXI é a velocidade das mudanças que vão acontecendo no chamado mundo do trabalho. Não são poucos os estudiosos que alertam, frente à complexidade da quadra atual, para a insuficiência revelada pelo velho esquema simplificado da luta de classes, sem prejuízo da permanência inconteste da lógica capitalista. São justamente as torções do processo de acumulação e dos movimentos que buscam a valorização do capital que estão na base dessas transformações. Os dois primeiros artigos deste número da Revista da SEP tratam da temática.

Ludmila Abílio, por conta de uma reflexão sobre os dez anos das manifestações de junho de 2013, não só traz à discussão a então chamada “nova classe média”, que foi às ruas uma década atrás, como flagra o ovo da serpente gerado pela perda de formas que vai desfigurando o mundo do trabalho pari passu com o aprofundamento da exploração. Combinam-se aí, para a geração de uma mudança substantiva na configuração das relações de produção, a informalização como forma de gestão, as corporações gigantes que oligopolizam a dataficação da vida e o despotismo algorítmico, entre outros fenômenos. Já João Leonardo Medeiros e Rômulo Lima enfocam outra face do mesmo processo de obscurecimento e indefinição, a saber, a “ideologia empreendedora”, uma conjunção da teoria do capital humano com a consolidação do empreendedorismo como campo de pesquisa a partir dos anos 1980. Para os autores, em ambas as formulações, a responsabilização pelo sucesso econômico recai sobre o indivíduo, sendo evidente que o cotidiano de barbárie, que fratura mecanismos de solidariedade, tal como o que marca a atual quadra histórica, favorece a difusão desse tipo de ideia e as práticas a ela associadas.

Ainda nos marcos da reflexão sobre o atual estado da arte nas relações entre o capital e o trabalho, bem como sobre a capacidade deste último de atuar de forma a revolucionar o sistema, André Guimarães Augusto aprecia criticamente a conhecida e bastante debatida obra de Moishe Postone Tempo, Trabalho e Dominação Social, lançada em 1993 e publicada no Brasil em 2014. Para ele, da interpretação de Postone, o Marx que surge é apenas aquele que enfatiza a aparência de sujeito que tem o capital, ao invés daquele que ressalta a luta de classes e a exploração do trabalho.

Outro tema que tem retornado constantemente à agenda de pesquisas es ruturada a partir da obra de Marx, é a indicação feita pelo grande pensador a respeito da existência de uma lei tendencial da queda da taxa de lucro — a qual poderia fornecer a chave da explicação dos problemas que contemporaneamente enfrenta o capital em seu movimento perpétuo de valorização. Bruno Prado Prates e Leonardo Gomes de Deus voltam a ela para defender que, apesar de revelar de forma concreta as contradições que constituem o modo de produção capitalista, a referida lei não pode ser tomada de forma preditiva, pois, segundo sua leitura, não é lícito extrair da categoria marxiana de lei a existência de qualquer tipo de determinismo econômico. As leis teriam aí simplesmente o papel de expor aquilo que é distintivo da produção fundada sob a lógica do capital.

Pensando na atuação dessa lógica num país periférico como o Brasil em tempos de abertura financeira total, Jéser Abílio esquadrinha o Projeto Porto Maravilha, desenvolvido na cidade do Rio de Janeiro desde a lei municipal aprovada em 2009. O citado projeto pretendia promover o turismo internacional, atrair investimentos imobiliários e novos fluxos financeiros, efetivando, para tanto, uma série de ações que, conforme o autor, reproduzem as práticas de racialização típicas dos processos de desenvolvimento econômico. O autor parte do pressuposto, já demonstrado na literatura contemporânea, de que as políticas econômicas e de desenvolvimento, principalmente no chamado “Sul global”, se fundam em coerção e violência estrutural, cujas especificidades são racializadas e constituem estratégia para a acumulação de capital.

Isto posto, podemos considerar que o presente número de nossa publicação exemplifica o amplo escopo de temas propiciado pela agenda de pesquisas que se desdobra da crítica da economia política de Marx. A despeito disso, boa parte dos cursos de economia hoje, tanto no Brasil quanto no mundo, ignoram o paradigma marxiano, e, em muitos casos, não só ele, como também o institucionalismo, o keynesianismo e outros approachs heterodoxos, concentrando-se exclusivamente no mainstream neoclássico, de extração ortodoxa. Não obstante o abalo provocado pela grande crise financeira internacional de 2008, a ortodoxia ainda predomina. Daí a necessidade premente e permanente da defesa do pluralismo na ciência econômica. Eis o tema de Theodoro Sposito, que confronta as recorrentes contestações de economistas da vertente convencional à perspectiva pluralista com possíveis respostas heterodoxas a cada ponto.

A hegemonia da ortodoxia, não só intra muros da academia como igualmente na grande mídia, é também a responsável pela enorme disseminação da ideologia da austeridade enquanto receita inescapável de política econômica, quaisquer que sejam os problemas a serem enfrentados. Nesse sentido, o livro de Clara E. Mattei The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (University of Chicago Press), lançado o ano passado, e resenhado por Bruno Toschi, vai resgatar a história para atacar esse despotismo teórico, entendido pela autora como uma sorte de invenção que funciona, sobretudo nos momentos de crise, como ferramenta “científica” para restaurar a ordem do capital, além de constituir elemento determinante a pavimentar a marcha das sociedades em direção ao fascismo.

Finalmente, cabe mencionar que este número abriga também a Carta de Maceió, elaborada no XXVIII Encontro Nacional de Economia Política, realizado entre 6 e 9 de junho do corrente ano nas dependências da Universidade Federal de Alagoas. Mais uma vez o Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central (Sinal) e o Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro forneceram o decisivo apoio material para que pudesse vir a público esta edição. Ficam aqui nossos sinceros agradecimentos.

Boa leitura!

Comitê Editorial”

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