O nó da reforma tributária

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Existe ambiente político para discutirmos a tributação na sua relação com o Estado que queremos, o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade ambiental?

Ilustração: Mihai Cauli

Por Adhemar S. Mineiro*

Costuma-se dizer que alguns temas são para os fortes. Se cada um de nós pode seguramente listar alguns temas difíceis de abordar e solucionar na vida, seguramente os governantes, se instados a listar temas difíceis, colocariam em uma lista curta o tema tributário. Isso por todas as sensibilidades que ele acaba desencadeando, dados os interesses em jogo.

O atual governo então resolveu jogar pesado. Avançou uma proposta de reforma tributária ainda sem nem ter concluído o debate sobre o arcabouço fiscal. No arcabouço, discute o conjunto do orçamento, seus objetivos e limites, sua conexão com a gestão macroeconômica. Na reforma tributária, discute quem paga (e quem não paga, ou seja, está isento), como paga, e como esse chamado “bolo tributário” é redistribuído entre os níveis administrativos (União, Estados e Municípios).

Isso é tão enrolado, que é sempre difícil mexer. A base da atual estrutura tributária brasileira foi montada a partir da reforma tributária de 1967 e do Código Tributário de 1966, mais os tributos criados a seguir, incluídos os da Constituição de 1988 (como o COFINS), e as redistribuições da Constituição de 1988. E não que não se quisesse mexer no tema. Mas nem os dois governos que tiveram maior capacidade política (direção, isto é, saber para onde queriam ir, e base política e popularidade, isto é, força para tentar se mover no sentido desejado), o primeiro governo de Fernando Henrique, e o segundo governo de Lula, não avançaram nessa discussão. Por uma questão simples, a meu ver: olharam para o Congresso e viram o risco.

E por que o risco? Para a União, para a discussão mais ampla, o que interessa sobre a questão tributária normalmente é a eficiência na arrecadação, simplicidade e transparência nos tributos, progressividade (a chamada justiça tributária, quem ganha mais paga mais e quem ganha menos paga menos), taxar a especulação e não a produção, e estimular a redução das desigualdades. Entretanto, para o Congresso, que vai decidir a questão, e tem entre seus senadores e deputados muitos candidatos a prefeituras e governos estaduais, a prioridade é outra. É fundamentalmente a distribuição do arrecadado (em especial o automatismo da destinação), e aí a disputa é como distribuir o bolo tributário entre os níveis federativos (União, Estados e Municípios). Aliás, foi parte importante do que fez a Constituinte que terminou seus trabalhos em 1988. E isso é o que temem os gestores da União: esfregar essa lâmpada da reforma tributária e perder o controle sobre o gênio que sai de lá. Aliás, a sinalização da fatura já começa a aparecer, com um fundo de compensação para os níveis subnacionais estimado em algumas centenas de bilhões de reais. No fim da discussão, o que é justo pode não ser política ou financeiramente viável.

Nas discussões atuais, encontram-se duas propostas de emenda constitucional de 2019, a PEC 45/2019 e a PEC 110/2019 (que propõem a unificação de vários tributos da União em um único). A lógica é a da simplificação, fazer com que nenhum tributo indireto seja absorvido na cadeia produtiva, de comércio ou de serviços e, para isso, propõe que a não cumulatividade seja plena e irrestrita, ou seja, os impostos não se acumulem (impostos “em cascata”). Isso significa dizer que todos os tributos pagos na aquisição de insumos ou na contratação de serviços, ao longo de toda a cadeia de negócios, serão compensados nas etapas subsequentes, até que o consumidor final pague o valor integral. A ideia é que as empresas serão apenas repassadoras e não pagarão nenhum centavo deste tributo (pagarão impostos como o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica, IRPJ, ou a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, CSLL). Portanto, a reforma tributária que está sendo discutida no Congresso Nacional não trata da tributação das empresas, mas sim, de desoneração total das empresas em relação a estes tributos. Outra premissa é a da incidência no destino, no consumo, e não em momentos intermediários na produção.

Entretanto, cabe lembrar que a não-cumulatividade, sem que se mexa nas alíquotas, representaria uma redução da arrecadação. É necessário ter em consideração ainda que, em relação às exportações, o tratamento proposto nas duas propostas contraria inúmeras demandas que vinham se acumulando ao longo do tempo de revisão da Lei Kandir, uma vez que a desoneração por ela produzida sobre exportação de produtos primários gerou perdas importantes de recursos financeiros para os estados exportadores, além de constituir um fator de desestímulo à industrialização. As PEC 45 e PEC 110 de 2019 consolidam definitivamente essa desoneração total do setor exportador. Isso só poderia ser compensado com tributos diretos (IRPJ, CSLL) das empresas desse setor.

Os setores empresariais que defendem a reforma da tributação sobre o consumo querem, em primeiro lugar, garantir a desoneração completa das suas cadeias produtivas ou comerciais. Em segundo lugar, não querem ser prejudicados em seus negócios por elevação de alíquotas sobre consumidores de seus produtos ou serviços. Supõem, no fundo, que o resultado final será uma desoneração, e não uma compensação da não-cumulatividade com um aumento das alíquotas no final.

E a nós, consumidores finais e que vivemos da renda de nosso trabalho, o que nos interessa nessa discussão? Alguns pontos são relevantes e o primeiro é que os consumidores querem elevar a tributação dos super ricos, fazer com que de fato o 0,1% do topo da população em termos de renda, os que concentram riqueza e propriedades, e que são, majoritariamente, os beneficiários dos lucros das empresas, financiem de fato a maior parte dos tributos. E reduzir os tributos sobre o consumo que oneram muito mais os mais pobres do que os mais ricos.

A tributação, no fundo, está associada ao Estado que queremos, aos serviços que queremos que sejam providos por esse Estado. E a tributação deve ser associada ao desenvolvimento econômico e à sustentabilidade ambiental. Esses são os pontos que deveriam ser tomados como ponto de partida para a discussão. Existe ambiente político para tal? É possível ter a conclusão desse processo de discussão que temos agora, sobre reforma tributária? Qual será seu resultado? A ver os próximos lances desse complexo jogo.

Publicado originalmente em Terapia Política.

* Economista, doutorando do PPGCTIA/UFRRJ, membro da Coordenação da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia-RJ e assessor da Rede Brasileira pela Integração dos Povos.

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