A velha política acabou
28 de maio de 2025
imagem: ABED
texto: Halley Margon
“O que eles não entendem é que a velha política acabou. Não há compromisso aqui. Um lado vai ganhar, um lado vai perder, então vamos lá.” (Steve Bannon, numa matéria para The Atlantic).
I
O que há por trás da declaração de guerra, porque é evidentemente uma declaração de guerra, transcrita acima? O que, de fato, deseja o bando que agora controla a política e as instituições do Império (Parlamento, Judiciário e Executivo, além do aparato ideológico que lhes serve de proteção) é simplesmente dispensar o lero-lero dissimulatório que recobre as ações do governo, remover máscaras e disfarces e agir conforme suas conveniências e desejos os mais inconfessáveis – sem mecanismos de contenção de qualquer natureza. E martelar a cabeça do cidadão até torna-las legítimas para ele. Haverá quem enxergue algo de positivo em tudo isso. Enfim, os Estados Unidos deixarão ver suas mais recônditas feições, rivalizando de igual para igual com russos e chineses. Chega de hipocrisia, dirão os Musk, Bannon, além do mais reservado e ao mesmo tempo mais extremista deles, Russell Vought (agora o único chefe do Departamento de Eficiência Governamental, DOGE). Os impérios são todos iguais e o tempo para insistir na tese contrária para ganhar a guerra da propaganda já passou. Na realidade, a democracia norte-americana tem e sempre teve uma cara destinada ao engodo e o custo para manter essa farsa está se mostrando mais que demasiado alto, desnecessário. O que pretendem, então, os senhores da recém-inaugurada Administração, não é uma marolinha ou minúsculas reformas cosméticas. Como escreveu Vought num ensaio para The American Mind, uma revista publicada pelo Clermont Institute (ver artigo de McKay Coppins para a The Atlantic), dando curso ao raciocínio de Bannon, os Estados Unidos estão começando a viver uma “era pós-constitucional” e a direita “precisa se livrar dos precedentes e paradigmas jurídicos que se desenvolveram erroneamente nos últimos duzentos anos”. Ao que estão se referindo aqui é nada mais nada menos que a celebradíssima e praticamente virgem Constituição de 1787 (emendada pouco mais de meia dúzia de vezes). O que desejam é um Executivo de fato Imperial. Batizada de Teoria do Executivo Unitário (unitary executive theory) e evocada entre os Republicanos pelo menos desde o mandato de Ronald Reagan, a ideia sustenta “que o Artigo II da Constituição dá ao presidente controle absoluto sobre o Poder Executivo”. “O grande desafio que um presidente conservador enfrenta é a necessidade existencial de usar agressivamente os amplos poderes do Executivo para devolver o poder – incluindo o que atualmente detém o Executivo – ao povo americano”, escreveu Vought meses antes da eleição de novembro passado.
II
Ninguém espere ouvir de qualquer um dos membros do triunvirato citado acima uma declaração de amor pelo modelo chinês ou russo de governo (e Estado), porque isso eles não farão nem sob o efeito da droga da verdade. Não em público. Mas o rumo por detrás das declarações já feitas, das medidas já tomadas e das políticas em andamento é claro o suficiente para quem quiser ver. A se concretizar o desejo dos trumpistas, a velha arquitetura da democracia norte-americana está prestes a ser botada abaixo para que em seu lugar se erga algo muito mais próximo do que atualmente se pratica na Rússia de Putin, na Turquia de Erdogan ou, até, na China – sem partido comunista, é claro. E se há alguma nuança é que Trump está mais para Putin que para Xi Jiping, o que não é pouco. O governo chinês é controlado por um partido político de massas, ainda que burocratizado e extremamente centralizado. Em 2014, atingiu a marca histórica de 100 milhões de inscritos (é como se quase 1/3 da população dos Estados Unidos fosse de militantes ativos do partido Republicano ou do Democrata) e, em 2023, “quase dois milhões de novos membros com menos de 35 anos de idade ingressaram no partido”. Não é gente que apenas aparece para votar em convenções partidárias sazonais e espaçadas. Ao contrário, são militantes experimentados de todas as idades e com uma imersão orgânica na sociedade chinesa. Na Rússia, quando o desmoralizado Partido Comunista da URSS simplesmente implodiu, o poder do Estado caiu nas mãos, primeiro de Boris Yeltsin (em 1991-1992) e logo de Putin, a partir de 1999. E sob o comando de Putin segue até hoje, um quarto de século depois. Não se diga, portanto, que noite após noite, na solidão do leito nupcial da Casa Branca, acariciado por suas louras melenas, Trump não desperta pensando ser Putin – da mesma forma como Gregor Samsa despertou metamorfoseado em barata. É esse o seu mal disfarçado sonho de consumo e é natural que a impaciência às vezes se aposse da alma do Imperador – para quê, afinal, esses velhos decrépitos e reacionários juízes da Suprema Corte que embora muito cooperativos não o deixam com as mãos livres para decidir os rumos do mundo, ou esse tão exíguo mandato de quatros anos, ou essa limitação de não poder se candidatar ao cargo pela terceira, quarta, quinta vez, ou essa Constituição, que já bem passada dos 200 anos está também para lá de esclerosada. Muito embora ainda haja obstáculos a serem transpostos até que o sonho possa se realizar, o importante é que uma direção está sendo delineada – uma direção que vinha sendo esboçada e construída desde bem antes do aparecimento do prodígio (ver artigo anterior).
III
A ideia pode parecer disparatada. Afinal, quem em são juízo seria capaz de imaginar uma deriva da Democracia Americana rumo aos modelos de executivos ultracentralizados que estão sendo experimentados no Oriente? Orban, Putin, Erdogan et outros. Mas antes de considerar a ideia disparatada, talvez seja aconselhável ver que, ao contrário, há na sociedade norte-americana umas tantas vantagens comparativas para que prospere. Não será preciso voltar a um passado longínquo para verificar a propensão ao autoritarismo e ao expansionismo imperialista, temperados e alimentados pela vontade divina que, ainda no século XIX, estava exposta no conceito do Destino Manifesto. A essa fabulosa fórmula de convencimento se sucedem outras, como o Moral Majority, da era Reagan e, a partir do início do terceiro milênio, uma enxurrada de novas profecias (Christian Right, Seven Mountains Mandate, Dominionismo…) destinadas a reforçar a necessidade de governos cada vez mais centralizados e mandões e defender um Estado cada vez menos laico. Tanto na eleição de 2016, quanto nas subsequentes de 2020 e 2024, o apoio massivo dos evangélicos (e nessa última também dos católicos) a Donald Trump, apenas reforçou a presença da religião na gestão pública, e uma noção excludente na política – de forma semelhante à mentalidade de muitos dos colonos que ocuparam a América, para os quais era intolerável a presença de outros credos e práticas religiosas que não a que eles próprios professavam. Até onde se sabe, Putin, Erdogan, Orban e similares prescindem ou como mínimo não se baseiam em suportes de tal natureza – ao contrário, por exemplo, do bolsonarismo, que tem notórios e profícuos vínculos com evangélicos de todos os matizes. Que não o necessitem agora não significa que o dispensariam se acaso o tivessem, é claro.
IV
Enquanto isso, no Velho Mundo, os portugueses também dão sua contribuição para a aterrorizante guinada à direita pela qual passa o resto do continente.
publicação original:

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