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O Brasil precisa de sua própria infraestrutura de IA

6 de junho de 2025

imagem: Mihai Cauli

texto: Luiz Martins de Melo

 

  O retorno de Trump ao governo dos EUA apressa a necessidade do Brasil de construir seu próprio ecossistema de inteligência artificial (IA) que seja seguro, competitivo e fiel aos valores nacionais.

  A sucessão de choques globais nas últimas duas décadas – incluindo a crise financeira global de 2008, a pandemia de COVID-19, as invasões da Ucrânia pela Rússia e o aumento da inflação – alimentou o ressurgimento da política industrial em todo o mundo. Mas o choque adicional do retorno de Donald Trump à Casa Branca ressaltou a urgência de reforçar a resiliência econômica doméstica e integrar as prioridades de segurança nacional e regional na formulação de políticas econômicas.

  Para o Brasil, a economia digital deve se tornar um foco central. As tecnologias digitais e a IA devem ser consideradas como potenciais motores de inovação e crescimento futuros.

  O desafio está em reduzir a forte dependência das principais empresas de tecnologia dos EUA. O governo Trump sinalizou que vai pressionar todos os países a reduzirem a pressão por novas regulamentações e impostos digitais.

  No Brasil, os formuladores de políticas devem desenvolver uma alternativa coerente e estratégica à dependência da tecnologia americana/estrangeira. Se isso soa como um esforço quixotesco, considerem a criação da Embraer, o etanol, a Petrobras e a exploração de petróleo em águas profundas e toda a tecnologia da Embrapa para a produção agroindustrial.

  A experiência recente expôs a vulnerabilidade dos serviços públicos e do setor privado do Brasil aos caprichos dos executivos das Big Techs dos EUA, cuja principal prioridade é manter boas relações com seu próprio governo. A disposição de Elon Musk de violar a legislação brasileira alimentou preocupações sobre a confiabilidade das plataformas americanas, assim como os esforços de outras empresas americanas para explorar as tensões comerciais para fazer lobby contra a tramitação da legislação brasileira para regulamentar as redes sociais.

  Consequentemente, ainda que o governo Trump revertesse suas políticas protecionistas amanhã, as dúvidas sobre a confiabilidade das empresas de tecnologia dos EUA persistiriam. E como as plataformas de tecnologia chinesas são igualmente problemáticas, é cada vez mais evidente que o governo brasileiro deve começar a desenvolver um ecossistema digital e de IA independente.

  Os políticos muitas vezes evitam decisões necessárias que parecem muito difíceis ou caras. No entanto, um modelo comercial público-privado para a construção de sistemas brasileiros de IA em larga escala é técnica e financeiramente viável e pode ser lançado rapidamente.

  Embora os laboratórios e institutos de investigação brasileiros já colaborem, ainda carecem de uma estratégia coordenada de produtos e de uma via clara da inovação para o mercado. Para isso o financiamento público e instrumentos de política industrial, como compromissos de compra antecipada, investimento em pesquisa e treinamento técnico serão necessários. A política para IA deve ter o potencial de alinhar a pesquisa científica com as necessidades da sociedade, principalmente para os serviços públicos. O desenvolvimento de um equivalente de IA para o Brasil exigirá grandes investimentos em infraestrutura e compromisso político sustentado.

  Dada a vantagem das Big Techs dos EUA, qualquer iniciativa exigirá um apoio público significativo. Mas esse apoio não precisa vir apenas por meio de financiamento direto. Também pode assumir a forma de acesso a recursos de computação públicos, vantagens fiscais vinculadas a compromissos de interesse público, acesso preferencial a conjuntos de dados governamentais indisponíveis para empresas americanas e compromissos de compra de instituições públicas.

  Os blocos de construção para esse modelo já estão em vigor e podem ser mobilizados rapidamente. A coordenação destes esforços será essencial para alcançar a escala necessária. Além de criar valor para a sociedade, isso ajudará as alternativas brasileiras a se diferenciarem das empresas de tecnologia dominantes dos EUA, uma condição fundamental para a viabilidade comercial. O que nos falta é escala e escopo para tornar várias das iniciativas em andamento eficazes e receber uma barreira defensiva por meio de uma ação estratégica coordenada.

  O argumento estratégico e econômico para o desenvolvimento de uma alternativa à IA dos EUA e da China é convincente. Mas uma iniciativa brasileira de IA público-privada e comercialmente orientada deve fazer mais do que servir aos objetivos de política industrial e de segurança; também deve refletir a cultura e os valores das potências médias do continente. Os modelos de IA desenvolvidos nos EUA projetam cada vez mais uma visão de mundo centrada nos EUA – que está rapidamente, e talvez irrevogavelmente, divergindo da Europa. É tempo de os países europeus traçarem o seu próprio rumo.

  As Big Techs e a IA, o principal instrumento tecnológico, transformaram todos os cidadãos e cidadãs do mundo em algo pior do que os servos no feudalismo. Estes, pelo menos, ao deterem os instrumentos de trabalho, negociavam a retribuição com o produto do trabalho que entregavam aos senhores de diversas formas – meia, terço, etc. Agora nós temos os instrumentos de trabalho e, ao utilizá-los para qualquer finalidade, fornecemos os insumos que as Big Techs (o capital) se apropriam para extrair uma renda (rent) sem nos retribuir em nada. Em alguns casos, como os Chat qualquer coisa, ainda temos que pagar para acessá-lo. Esse admirável mundo novo da exploração universal é saudado como modernidade e “empreendedorismo” tecnológico. Os precarizados são capitalistas em competição, dado o seu “capital humano social” (sic). E nós aplaudimos essa modernidade retrógrada, autoritária, ao achar que é neutra e democrática. Não existe nada neutro nem natural na sociedade e no capitalismo de Estado.

  Qual será a alternativa para investimentos importantes em infraestrutura e tecnologia que não repitam as políticas do governo JK e outros, que trouxeram multis para produzir aqui e aumentar a desnacionalização e a dependência?

  A indústria e os serviços de maior densidade tecnológica, como mostram os exemplos históricos, só são bem-sucedidos com uma estratégia que defina uma política de inovação com processos bem definidos e integrados de infraestrutura de ciência e Tecnologia – C&T, grandes empresas nacionais, capacitação tecnológica e de inovação para as pequenas e médias empresas – PMEs, institucionalidade flexível de propriedade intelectual e poder de compra do Estado. Esses processos são transversais e têm que ser direcionados em conjunto para as prioridades estabelecidas. Todos são processos que para serem bem-sucedidos demandam prazos superiores aos quatro anos de um governo. No frigir dos ovos, tudo depende da política.

  O mito da caverna de Platão descrevia que os prisioneiros acorrentados acreditavam que as sombras projetadas na parede da caverna eram o mundo real. Nós hoje somos os prisioneiros de Platão, tão inseridos no mundo digital, que estamos vendo a realidade de forma distorcida, se considerarmos que as redes sociais são um recorte da vida das pessoas e que o algoritmo tende a mostrar mais daquilo que já gostamos, valorizamos e acreditamos.

  O Brasil foi ousado quando quebrou patentes de remédios para termos acesso a tratamento contra a Aids, quando formou a Embraer, o etanol para enfrentar a crise do petróleo, a Embrapa para o cultivo do cerrado e a Petrobras em exploração do petróleo em águas profundas? Qual o nosso planejamento para ter acesso à infraestrutura digital (datacenters) de que necessitamos?

  A China possivelmente nacionalizará algumas empresas para enfrentar a competição em IA. Já existe uma forte especulação em Washington sobre a possibilidade de o governo americano intervir para nacionalizar ou participar das empresas de inteligência artificial por questão de segurança nacional. Os governos americano e chinês estão em uma competição que não podem interromper, dado que as suas Forças Armadas dependerão cada vez mais dessas tecnologias que começarão a fugir do controle das companhias privadas (Big Techs).

  Por último e, talvez o mais importante, as previsões sobre a onda de desemprego que está por acontecer com enorme desgaste social e político necessitará de inovações de política social para o seu enfrentamento e evitar que a extrema direita se aproprie dessa insatisfação e ressentimento. A democracia pode estar em grande perigo se a infraestrutura digital não for tratada politicamente como um serviço público de cidadania.

  PS: Sobre o tema, recomendo a leitura de dois livros: “Economia Política de Dados e Soberania Digital: Conceitos, Desafios e Experiências no Mundo”, de Helena Martins Lastres, José Eduardo Cassiolato e Marcos Dantas (ORGS) e “A República Tecnológica: Tecnologia, política e o futuro do Ocidente”, de Alexander C. Karp, e Nicholas W. Zamiska, que expõe a visão do Vale do Silício.

publicação original:

https://terapiapolitica.com.br/o-brasil-precisa-de-sua-propria-infraestrutura-de-ia/

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