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Análise de Conjuntura da Argentina de Javier Milei

imagem: ABED

Desde o início do governo de Javier Milei, a Argentina enfrenta uma acentuada deterioração do bem-estar social de sua população. O aumento de tarifas de energia e transporte, a perda do poder de compra das famílias, a recessão econômica, a pobreza e a extrema pobreza atingiram níveis recordes. No entanto, apesar desse cenário, Milei ainda desfruta de uma relativa aprovação por setores populares e especialmente da grande mídia nacional e interncional.

As políticas econômicas e sociais implementadas pelo governo de Milei impactam de forma desproporcional as camadas mais pobres da população. Em busca da redução de gastos públicos para gerar superávit nominal, o governo adotou medidas severas, como a retirada de subsídios ao transporte público, dificultando a mobilidade de trabalhadores que dependem desse meio (Lucena, 2024); a demissão de funcionários públicos essenciais para a prestação de serviços à população, sob a justificativa de reduzir o tamanho do Estado (Craveiro, 2024); o reforço das forças de segurança, acompanhado do aumento da violência policial contra manifestantes, como aposentados e pensionistas (Smink, 2025); e a eliminação de ministérios essenciais, como os de Meio Ambiente e Ciência, ao mesmo tempo em que o país enfrenta apagões causados por danos na rede elétrica devido a ondas de calor (Cotrim, 2023; O Globo, 2025).

Este contexto agrava ainda mais uma crise econômica e social que já persiste há quase uma década devido à hiperinflação. O consumo da população caiu vertiginosamente, reflexo da perda de poder aquisitivo e do aumento do desemprego. Nos primeiros cinco meses do governo Milei, o setor privado perdeu 177 mil empregos (Brasil de Fato, 2024A). Em termos proporcionais, esse número equivale ao Brasil perder mais de 820 mil postos de trabalho no mesmo período. Ao mesmo tempo, programas de assistência social foram drasticamente reduzidos em nome da geração de superávit e do controle da hiperinflação (Welle, 2025).

Sob a perspectiva macroeconômica, os últimos indicadores também são alarmantes. Em 2024, a economia argentina apresentou uma retração de 1,8% (Valor Econômico, 2024). O setor industrial caiu 9,4%, a construção 1,3% e os serviços 1,6%, enquanto as exportações cresceram 18,1%. Esse cenário contrasta com 2023, quando a retração foi menor, de aproximadamente 1,3% (CNN, 2024). A estabilidade da inflação e do câmbio é garantida às custas da população mais vulnerável, que sofre com cortes de gastos sociais, aumento da pobreza e desemprego crescente. Ainda assim, a grande mídia tem interpretado alguns desses resultados de forma positiva.

Além disso, a redução de políticas públicas afeta setores críticos, como a educação. Um exemplo significativo é o corte do reajuste inflacionário nos orçamentos operacionais das universidades (Brasil de Fato, 2024B). Paradoxalmente, enquanto o governo promove o estímulo à energia nuclear, reduz drasticamente os investimentos em ciência, tecnologia e infraestrutura para garantir a autossuficiência energética (Carta Capital, 2024).

Dados recentes sugerem um momento de recessão da pobreza argentina (INDEC, 2025). Resta, agora, ter atenção e vigilância à manutenção desses indicadores. Aqui, vale notar que, se a pobreza gerada pela própria recessão de Milei é superada pela estabilização do processo, de maneira que volta à estaca zero, não cabe coroar o governo com louros pela solução de um problema que ele próprio criou.

Sob esta ótica, as tentativas de prognóstico para a economia só demonstram querer castigar a classe trabalhadora, onde a atividade econômica só declina, contrastando com o que foi prometido pelo exagero retórico e, ainda por cima, contradizendo o que é dito pela economia neoliberal.

Nos últimos anos, a ascensão da extrema direita no cenário internacional tem sido marcada por líderes que promovem agendas ultraliberais e nacionalistas, desafiando a governança e a cooperação multilateral. Esse fenômeno tem, como as políticas "America First" de Donald Trump nos EUA (que resultam na retirada do país de acordos internacionais relevantes, como o Acordo de Paris), se demonstrado um claro desafio à diplomacia cooperativa (Herz; Summa, 2023). Na Europa, partidos de extrema-direita e o recente crescimento da popularidade de Giorgia Meloni na Itália têm impulsionado agendas nacionalistas e eurocéticas, questionando a governança da União Europeia (Campos, 2020). A eleição de Javier Milei na Argentina em 2023 se insere nesse contexto, caracterizada por uma mistura de autoritarismo e desregulamentação econômica radical (Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 2024).

No contexto recente, Milei tem adotado uma postura de confronto com organizações internacionais e parceiros regionais. Uma de suas decisões controversas foi retirar a Argentina da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2024. Apesar de minimizarem as consequências, especialistas alertam para o agravamento do isolamento internacional e os prejuízos à população, especialmente devido à fragilidade do sistema de saúde argentino (Observatório de Regionalismo, 2024). Dessa forma, observa-se uma inflexão significativa na política externa do país. O governo tem buscado reorientar as relações internacionais argentinas, priorizando um alinhamento ideológico com os Estados Unidos e adotando uma postura mais cética em relação à integração regional e cooperação multilateral.

Com a reorientação da política externa argentina, estabeleceu-se alianças com Estados Unidos e Israel enquanto se distancia de parceiros tradicionais como Brasil e China. Essa estratégia, semelhante às "relações carnais" de Carlos Menem nos anos 1990, possui um viés ideológico mais forte, o que pode comprometer a integração comercial e investimentos estrangeiros (Observatório de Regionalismo, 2024). Suas ações se alinham, afinal, com a onda da extrema-direita pelo mundo nos âmbitos da fragmentação diplomática e da negligência com o bem-estar social da população, como ficaram claras nas políticas de Donald Trump e no crescimento de movimentos semelhantes na Europa, o que mostra um padrão claro no cenário internacional.

Com vista a essas constatações, o que parece contraditório em notícias e avaliações recentes de alguns veículos da grande mídia é a recorrência de uma visão positiva e de um discurso otimista acerca das decisões econômicas do Governo Milei. Segundo o site de notícias do jornal CNN, por exemplo, para Roberto Luis Troster, ex-economista-chefe da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e sócio da Troster & Associados, a guinada argentina pode ser elogiada como “um grande experimento liberal” e “uma verdadeira revolução” na qual “há ganhadores e perdedores”; Tony Volpon, ex-diretor do Banco Central (BC) para Assuntos Internacionais, na mesma matéria, enxerga maior sucesso no atual mandato em relação ao anterior em “realizar uma reforma mais duradoura”, enquanto Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda, afirmou que a Argentina precisa “se livrar do populismo e da irresponsabilidade que têm caracterizado o país pelos últimos 70 anos” (CNN, 2025a). 

De maneira geral, também não são incomuns outras matérias do site que expõem “conquistas” da Casa Rosada, como o superávit nominal alcançado pelo país de 600 bi de pesos argentinos (CNN, 2025b) ou a baixa inflação no início de janeiro (CNN, 2025c), bem como da plataforma de notícias econômicas Infomoney, que colocam as estratégias de Milei para atrair investidores em foco, apresentando figuras como gerente de portfólio da TT International (EM Hedge Fund Strategy) Javier Tello, que tolera o baixo desempenho das ações argentinas com vista a ações que honram a dívida do país atrelada ao dólar (InfoMoney, 2025).

O padrão que podemos encontrar em tais discursos sempre acompanha a retórica neoliberal de que, quanto mais liberalizantes forem as medidas de um governo, melhor é sua avaliação diante de grandes agentes bancários e do mercado. Além disso, é visível como o otimismo construído sobre índices econômicos de crescimento puro do país (como PIB, inflação e dívida pública) se confundem com uma avaliação do desenvolvimento social e da atenção às demandas mais básicas da sociedade argentina. O que ocorre, ainda, é um reforço da retórica expressa por esses agentes junto das mostras abstratas do dito “grande experimento liberal” do Governo Milei a partir de indicadores que servem de parâmetro para comparar tão somente os últimos anos de profunda crise e controvérsia dos governos de Maurício Macri (2015-2019) e de Alberto Fernández (2019-2023) (CNN, 2025a). 

É preciso, portanto, olhar para esse otimismo a partir de um viés crítico. É natural que o desgaste do populismo de ambos os espectros políticos dos último governos argentinos lance panos quentes sobre Milei, mas é essencial que haja prudência ao avaliar o que de fato interessa ao povo argentino e escutar os protestos que enchem as ruas e cercam a Casa Rosada: o distanciamento frio da justiça social não pode, jamais, ser razão para tolerar a fome, a miséria, a crise diplomática e a violação de direitos fundamentais. Desse modo, a entrega à retórica circular ultraliberal pelo desencanto com o populismo na Argentina e a crença em qualquer grupo de interesse que cite as medidas de Milei como “mal necessário” ou “verdadeira revolução” não podem ser outras coisas, senão ressentimento, ingenuidade ou mediocridade - quando mais uma tentativa fracassa, é o momento de reconhecer isso e nos abrirmos a novas possibilidades. 

 

Referências:

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BRASIL DE FATO. Recessão do governo Milei fez a Argentina perder 177 mil empregos do setor privado em cinco meses. 2024A. Disponível em:https://www.brasildefato.com.br/2024/10/03/mesmo-com-protestos-massivos-milei-veta-lei-de-investimento-em-universidades-na-argentina/. Acesso em: 19 mar. 2025.

CAMPOS, L.O. A ascensão da nova direita como movimento transnacional e os desafios das instituições: o caso do Brexit. Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/28350.

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CNN BRASIL. Argentina tem superávit nominal de 600 bilhões de pesos em janeiro, diz governo. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/argentina-tem-superavit-nominal-de-600-bi-de-pesos-em-janeiro-diz-governo/. Acesso em: 19 mar. 2025.

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COTRIM, A. Milei publica 1º decreto e reduz número de ministérios de 18 para 9. UOL [online], Buenos Aires, 10 dez. 2023. Internacional. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2023/12/10/milei-publica-primeiro-decreto-e-reduz-numero-de-ministerios-de-18-para-9.htm. Acesso em: 13 mar. 2025.

CRAVEIRO, R. Javier Milei anuncia demissão de 70 mil funcionários públicos. Correio Braziliense [online], 28 mar. 2024. Mundo. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2024/03/6826733-javier-milei-anuncia-demissao-de-70-mil-funcionarios-publicos.html. Acesso em: 13 mar. 2025.

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Redação: João Raiel, Diretor Acadêmico da FENECO; Leonardo Guedes, 1° Diretor Acadêmico da FENECO; Rebeca Amazonas, Presidenta da FENECO; Pedro Henrique Chinaglia, Tesoureiro da FENECO; Alex Albuquerque Rodrigues, Membro-Convidado da FENECO; Matheus Pessoa de Oliveira, Membro-Convidado da FENECO