A questão subjetiva e o canto de réquiem do pensamento nacional
7 de abril de 2025
imagem: ABED
texto: Elias Jabbour
Tem sido muito comum no debate público brasileiro a discussão sobre os rumos do país através do que deveria ser feito, qual o rumo e as políticas de desenvolvimento a serem implementadas. Um ataque frontal à política monetária encampada pelo Banco Central e a quase criminalização da utilização da política fiscal enquanto instrumento legítimo ao desenvolvimento nacional. Enfim, podemos colher ótimos diagnósticos e propostas claras para o enfrentamento de nossas questões. Mas pouco nos atemos a um elemento fundamental neste debate: as convicções. Ou o chamado problema subjetivo.
Faltam estudos de fundo sobre o grande dano à capacidade da inteligência brasileira encerrado desde os anos de 1990, com a contrarrevolução neoliberal, e como isso tem se tornado um problema de dimensões nada pequenas. E justamente no momento em que o mundo, e o Brasil em particular, estão grávidos de um pensamento estratégico com certo grau de refinamento. Causa e consequência desta questão é o desaparecimento do debate político o que chamamos “categorias de totalidade”. Nação, projeto nacional, desenvolvimento, desenvolvimentismo, industrialização, políticas industriais e planejamento são apenas algumas categorias de totalidade que sumiram do centro dos grandes debates nacionais. Sim, tais categorias aparecem em rodas de conversas, debates localizados e grupos em redes sociais. Mas sem a mesma envergadura com que pautavam a política nacional entre os anos de 1930 e 1980.
Ao contrário, o que o professor Barros de Castro chamou de “consenso da estabilidade” é quase um senso comum entre economistas ortodoxos e heterodoxos. São exíguas as contestações às noções que colocam a estabilidade como pressuposto ao crescimento. Neste particular, percebemos a expressão de uma crise da filosofia, pois de Marx a Hirschmann e Ignacio Rangel, a sociedade se desenvolve partindo de saltos de um ponto de desequilíbrio a outro. O oposto não é verdadeiro sobre o “equilíbrio”. O Brasil é um lugar do mundo onde essa “crise da filosofia” se transforma com muita rapidez em uma “crise de pensamento” que afeta todo o ocidente e suas periferias.
O positivismo vulgar toma o lugar da dialética e da visão de totalidade. A fotografia da realidade se impõe diante da visão baseada em termos de processo histórico. A ciência econômica é atingida em cheio ao produzir uma enxurrada de mestres e doutores – ortodoxos e heterodoxos – sem uma bagagem histórica e filosófica que os possibilite absorver e utilizar o poder da abstração. Afora, dentre os jovens mais destacados no debate público, a influência com que o pensamento e visões anglo-saxãs exercem sobre eles: são heterodoxos, mas – de forma chocante – não são nacionalistas ou desenvolvimentistas (uma economista estrangeira é contratada a peso de ouro pelo Estado brasileiro para nos ensinar sobre políticas industriais, agora sobre a rubrica de “missões”). Retornando, daí as diferenças entre ortodoxia e heterodoxia ficarem cada vez mais no campo das relações entre poupança e investimento do que entre duas ideologias antagônicas. A falta de uma poderosa filosofia e visão de processo histórico esteriliza nossos economistas, e cientistas sociais em geral, a se aventurarem a “sair da caixinha”, apreenderem o Brasil enquanto projeto nacional e civilizatório e uma nação capaz de jogar peso na luta pela paz mundial.
Nossos jovens economistas heterodoxos deixaram de ser educados à luz dos mestres Furtado e Rangel, antes de mais nada grandes brasileiros, grandes filósofos e grandes historiadores. Inexiste um pensamento econômico nacional baseado em nossa tradição pré-1990. Citar autores do Atlântico Norte e Europa tornou-se um grande critério de validação; algo inaceitável aos chamados “boêmios cívicos” de Getúlio Vargas – todos nordestinos e nacionalistas.
Esse problema subjetivo agrava-se na mesma proporção em que ganham destaque as chamadas micronarrativas. Não se tratam de narrativas que expõem as contradições inerentes às questões raciais, gênero, LGBTQIA+, indígena etc. A nós não são meras pautas identitárias. São civilizatórias e devem ser abordadas como parte fundamental de um projeto nacional de desenvolvimento. O problema é o particularismo em contraponto ao universal. O mais interessante é notar que o desenvolvimento tecnológico nos entrega possibilidades jamais imaginadas para a construção de discursos baseados em categorias de totalidade. Inexiste isso no Brasil. E os prejuízos não são nada pequenos, pois onde faltam grandes ideias, sobram visões moralistas e terreno fértil ao neoliberalismo e ao fascismo.
Exemplo da baixa densidade de uma visão larga de país foram as discussões sobre a admissão do Brasil à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI). Uma enxurrada de fake news, confusões retóricas e mesmo, pasmem, uma defesa da “soberania” foram utilizadas com forma de interditar o debate. O mais incrível é que toda essa retórica sinofóbica partir de dentro dos aparelhos do Estado e do governo. Isso expõe, de forma objetiva, ao menos dois problemas. O primeiro foi a perda evidente de aproveitar uma tendência que a China entrega para a reindustrialização brasileira. A BRI não expõe nenhum país a situações constrangedoras como as que vivemos com as frequentes visitas de “técnicos” do FMI e Banco Mundial para certificarem-se de que estamos aprendendo a “lição de casa”.
O imperialismo infantiliza e trata como crianças imbecis os países de sua periferia. A China, através da BRI, coloca o Sul Global como adultos na mesa de negociações. Ganha mais e tira mais vantagens dos chineses quem tiver o mesmo apetite que a China teve ao negociar com os países ricos a forma como se daria a absorção de investimentos estrangeiros diretos (IEDs) no início das reformas econômicas de 1978. O Brasil perdeu, em nome de uma propalada “equidistância’, uma possibilidade para em seguida aprovar uma abertura dos portos às nações amigas, versão 4.0. Refiro-me ao acordo comercial Mercosul-União Europeia.
O segundo problema é a forma como a narrativa (neo) liberal e cosmopolita não somente domina o debate público nacional. Ela também corrói o aparelho de Estado. Parêntese necessário. Bom lembrar da alienação sobre jovens intelectuais e influenciadores do campo progressista causada pela distribuição de dinheiro vindo de ONGs estrangeiras como a Open Society, Fundação Ford e fundações de partidos social-democratas europeus, causando uma interdição completa no debate na esquerda sobre a centralidade da questão nacional. Eis um problema que afeta não somente a capacidade de jovens pensarem o país partindo de categorias de totalidade, mas trata-se de uma séria questão de soberania nacional. O Estado brasileiro foi tomado de assalto por liberais desde o processo de redemocratização e da contrarrevolução iniciada por Collor.
Não somente o Banco Central tornou-se um aparelho de Estado notadamente tomado por interesses particulares. Nossa diplomacia é capitaneada por uma instituição (Itamaraty) que se reinventa na década de 1990 propondo uma linha direta entre nossa política externa com o “mundo baseado em regras e instituições” inventado em think tanks do Atlântico Norte. São elementos destacados desta diplomacia que operam abertamente contra uma política brasileira para a América do Sul, a África e, de forma raivosa, contra um maior alinhamento brasileiro à República Popular da China.
Não faltam ideias, mesmo que isoladas, para o Brasil se reencontrar consigo mesmo, superar a dependência e discutir, de forma séria (disputando ideias) – por exemplo – a relação câmbio/juros, a hegemonia do dólar no mundo, a abertura comercial e financeira brasileira, a inserção e vulnerabilidade externa do país etc.
publicação original:
Jornal dos Economistas Nr 428 Abr 2025

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