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A república imperial norte-americana e o choque de competitividade

13 de março de 2025

imagem: Revista do Economista

texto: Bernardo Kocher

 

 A ascensão de Donald Trump ao seu segundo mandato presidencial expõe com nitidez a natureza da situação geoeconômica tensa dos Estados Unidos da América no presente momento. Esta se deve à situação relativamente desvantajosa na correlação de forças em termos de competitividade econômica com novas forças oriundas de Estados Nacionais e associações entre entes nacionais que ameaçam a posição até aqui privilegiada da economia norte-americana. Tratamos aqui basicamente de três atores que consideramos os maiores desafios a serem enfrentados pelo novo governo: a República Popular da China, a Federação Russa e o grupamento Brics.

Estes atores têm imposto nas últimas duas décadas (ou ameaçam impor no futuro) fortes reveses para a estrutura de poder econômico, político e até militar da qual os EUA têm sido líderes desde o final da 2a Guerra Mundial. Seu papel de liderança inconteste se manifesta pelo predomínio nos processos de inovação científica, social, organização do processo produtivo, financeiro, comunicacional e, associado a isto, sua capacidade de desenvolver mercados consorciados à sua economia. A democracia em que todos estamos acostumados a nos socializar possui um tônus espelhado nos partidos políticos, na cultura democrática e instituições liberais que este país desenvolveu e impôs como modelo. A industrialização calcada no sistema taylorista-fordista, o padrão de consumo elevado que ele requer e, por consequência, o dólar tornaram-se paradigmas. Mesmo a constituição de um novo formato gerencial produtivo, o toyotismo, não nega e por vezes não consegue superar totalmente as suas origens no interior da cultura empresarial estadunidense. O poderio militar norte-americano, o fator menos afetado de imediato pela elevação da projeção de poder existente e potencialmente expandida dos competidores, é o baluarte de um processo de contínuas intervenções com fins políticos em várias partes do mundo. Daí a necessidade de contínua militarização dos competidores, tendo como parâmetro a capacidade norte-americana em emprestar seu poderio para a sua política externa ou para seus principais aliados. Mas aqueles estão longe de lograrem superar o predomínio norte-americano no setor.

Será dentro deste quadro de evolução contínua da ampliação das capacidades produtivas e estratégicas dos competidores aqui qualificados e as fortes inflexões das políticas norte-americanas para reagir a esta perda de exclusivismo na formulação de modelos institucionais e econômicos onde deve ser compreendida a desarticulação dos mecanismos de projeção de poder norte-americano desenvolvidos durante a Guerra Fria. Assim, nossa observação é focada principalmente após o fim do conflito bipolar, onde encontraremos as bases para tratar do processo de enfrentamento da perda do monopólio norte-americano de definição de meios materiais e imateriais que constituem nossa vida social. Este quadro delineado acima é geralmente tratado como sendo uma “crise”, no mais das vezes “de hegemonia”, sendo assim terminal. Cremos, no entanto, que o processo de perda relativa de projeção de poder norte-americano não se constitui no ocaso da capacidade dos EUA de desenvolver e manter seu poderio; trata-se, em nossa compreensão, de uma fase de adaptação a um sistema internacional competitivo como nunca antes ocorreu na História Econômica. Assim, a análise do governo que ora assumiu deve considerá-lo exatamente como ele é, e não como algo que já está previamente desenhado no interior de uma suposta “crise” insuperável: o fim de uma fase (o fim do exclusivismo norte-americano) e a tentativa de recuperá-lo de forma unilateral (e não consensual com parceiros tradicionais).

Não é a primeira vez que os EUA enfrentam limites à continuidade do seu exclusivismo de poder. Em 1979, ao aplicar o choque dos juros nos seus títulos da dívida pública mobiliária federal, o processo de “freio de arrumação” da geoeconomia mundial através da “diplomacia do dólar forte” e da 2ª Guerra Fria viabilizaram a superação de uma pletora de crises, sendo a mais proeminente a econômico-financeira. Dez anos mais tarde, após o fim da URSS, não se pensava ser necessário reorganizar as regras de manejo da economia mundial, apenas ampliá-las com a incorporação de novos aliados do antigo mundo comunista. Estes passaram a construir suas economias de mercado aos moldes definidos pelas instituições controladas pelos EUA (basicamente o FMI e o Banco Mundial) e seus aliados preferenciais, os países da Europa centro-ocidental. Não era tangível naquele momento qualquer contestação ao poderio dos tradicionais e principais países líderes mundiais, alocados no interior da aliança transatlântica. Esta amálgama, avaliava-se então, iria resistir aos processos de competição entre seus membros e destes com o mundo exterior a este conglomerado. Parecia que a parceria formada para a reconstrução no pós-2ª Guerra Mundial iria continuar após o fim da Guerra Fria.

Esta projeção não se concretizou. Várias crises financeiras (Queda da Bolsa de Valores de 1987, Crise Asiática de 1997, Crise Russa de 1998, Crise Brasileira de 1999, Crise do Subprime de 2007-2010) questionaram de forma não definitiva o modelo de gestão da economia financeirizada que fora estabelecido com clareza no governo de Bill Clinton (1993-2001). Este se caracterizou pela abertura de mercados através de centenas de acordos comerciais e desregulamentação financeira radical da economia nacional. Ambas medidas estavam vestidas com o manto da ideia de que o mundo estava em processo de aperfeiçoamento da “globalização”.


É este modelo formado no início da década de 1990 que está agora sob crítica acerbada (não necessariamente em crise) do novo mandatário norte-americano. Aquela estrutura de poder econômico-financeira foi forte o suficiente (diferentemente do ocorrido em 1929) para enfrentar e superar crises econômicas globais, mas não está preparada para lidar com o potencial devastador da associação do desenvolvimento industrial e militar russo e chinês e as ambições de conquistarem um novo papel na economia mundial representado pelo grupamento Brics.


O impasse do mainstream político norte-americano foi representado no último pleito eleitoral por duas tendências distintas na forma de lidar com o problema. Esta disputa se consolidou da seguinte forma: mudar ou não as estruturas do poderio econômico e militar norte-americano. O impasse já estava presente no primeiro mandato de Donald Trump, mas parecia ser aos olhos do grande público uma esquisitice, um “ponto fora da curva” ou a manifestação do nazifascismo da nova extrema direita norte-americana. Além disto, a pandemia de Covid-19 inibiu o desenvolvimento de políticas públicas e ações governamentais assertivas, dada a prioridade à atenção que deveria ser dispensada ao problema sanitário. Neste novo quadriênio em que ocupará o poder, com o sucesso da Operação Especial implementada pela Federação Russa na Ucrânia, a contínua ascensão do desempenho econômico chinês e a desastrosa legitimação de uma política social genocida contra o povo palestino aplicada pelo Partido Democrata, a opção pela mudança tornou-se mais consistente para o eleitorado norte-americano. Este ainda assim produziu apenas um resultado que demonstra mais o afastamento dos democratas, seus métodos burocráticos de tratamento dos problemas da classe trabalhadora e sua ação tóxica de apoio à política social genocida na Palestina do que realmente aceitação do reformismo (apenas) embutido (e não apresentado como um projeto macroeconômico consistente) no interior do discurso caótico do republicano de extrema direita.


Assim, tendo chegado ao poder com uma proposta reformista incompleta e uma base social claudicante, Donald Trump desenvolve uma percepção de que o que importa é repor por quaisquer meios a capacidade econômica perdida do seu país, vista como sabotada pela globalização econômica. Ele procurará restaurar um ambiente de negócios pela rapina de meios materiais não americanos que ajudem a diminuir custos e ampliar lucros do capital produtivo de seu país. Daí surgirão
os empregos essenciais ao equilíbrio social perdido pela financeirização vertiginosa da economia americana. Afinal, este ambiente adverso ao capital produtivo foi implantado trinta anos atrás por um presidente democrata. Mas a falta de coerência do novo mandatário se manifesta vivamente. Primeiro ao defender o livre mercado, mas ao mesmo tempo o estabelecimento de tarifas protecionistas. Segundo por afirmar que vai cobrar das autoridades monetárias medidas administrativas para a redução da taxa de juros. Estas ações voluntariosas remetem seu programa econômico ao universo do improviso.

Lembremos aqui a articulação durante a década de 1970-1980 pela classe dominante do capitalismo desenvolvido em instituições think tanks (Comissão Trilateral e Fórum de Davos), que levaram à elaboração de uma robusta política de valorização fictícia do capital e implantação de programas de desregulamentação estatal, cortes de direitos sociais e reformas institucionais que acompanharam a aplicação da subida da taxa dos juros em 1979. Deste conjunto de saberes e consensos elaborados previamente é que surgiram dois neologismos cruciais para o universo do pensamento e práticas neoliberais: globalização e governabilidade.


Em meio ao seu caótico modo de pensar e prepotente de agir, somos obrigados a intuir, mais do que analisar com base em um sistema de propostas minimamente desenvolvidas, uma possível lógica econômica que virá nos próximos anos do governo norte-americano. Seus impactos sobre a economia mundial serão, também, um enigma da esfinge: “decifra-me ou te devoro”.

Sem nenhuma preparação prévia e nem conquista de novos aliados além das suas bases eleitorais, sua perspectiva volta-se para setores internos que parasitariamente esperam benefícios oriundos de tarifas protecionistas ou revalorização de ativos que estão paralisados pelas novas formas de produção e consumo. Dada esta inconsistência programática e social, Donald Trump conta, para o sucesso de suas medidas, com apenas dois fatores: força física e sorte.

Não é de surpreender, coincidentemente ou não com o início do novo governo, que a República Popular da China tenha tornado público e operacional um novo mecanismo de inteligência artificial a ser utilizado pelo usuário comum, o Deep Seek. Sua superioridade técnica (menor investimento e custo de implementação, maior capacidade de processamento e menor consumo de energia) e sua ilimitada amplitude social (código aberto) tornam claro que um dos fundamentos basilares da economia política norte-americana (pensamento e atuação econômica dos agentes econômicos) foi mortalmente atingido. A incapacidade ao menos momentânea da iniciativa privada e governo norte-americano em reagirem a um verdadeiro “soco na boca do estômago” competitivo indica o quão longe está o capitalismo liberalmente concebido e globalizadamente implementado de estabelecer parâmetros para a reprodução da vida social e econômica.

Quando da derrota política e militar dos americanos no Vietnã, Raymond Aron escreveu um verdadeiro libelo pró-América: A República Imperial: os Estados Unidos no mundo pós-guerra (Rio de Janeiro, Zahar, 1975). Neste trabalho o autor caracteriza o papel saudável de liderança hegemônica tanto quanto de mandatário monárquico exercido pelos EUA sobre o conjunto das nações inseridas na órbita ocidental. O revés causado pela saída do Vietnã sem promover a mudança do regime político do país não abalou, segundo Aron, o soft power da potência líder.

O risco que vemos em Donald Trump, dando certo ou não seu modelo econômico, é que sejamos forçados a reconhecer que o que ele está construindo é um “império republicano”. Se este limite não for rapidamente resolvido, a economia americana continuará propensa à dissabores na ampliação de mercados através da inovação científica e tecnológica. Se assim for, só restará a guerra predatória de conquista por parte dos EUA para (quem sabe) reaver sua capacidade de ser uma república imperial.

publicação original:

Jornal dos Economistas. Edic¸a~o 427 - Marc¸o/2025

https://www.corecon-rj.org.br/jornal-economista.php

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