Fernando Santa Cruz: ainda estou aqui
16 de janeiro de 2025
imagem: Mihai Cauli
texto: Marcelo Santa Cruz, Eduardo Scaletsky e Doralina Rodrigues Carvalho
O desaparecimento forçado de Fernando e centenas de outros brasileiros foi uma arma usada pela ditadura para gerar medo nos que lutavam. Mas eles foram derrotados por Fernandos e Fernandas, e ainda estamos aqui para impedir os golpes contra a democracia.
Fernando Santa Cruz, pela 50ª vez, esteve ausente das festividades natalinas e da recepção ao novo ano de 2025. Sequestrado pela ditadura militar em pleno sábado de carnaval, dia 23 de fevereiro de 1974, até hoje ainda não teve seu corpo entregue à família.
O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e protagonizado por Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Selton Mello retrata, com sensibilidade, a dor e o sofrimento causados pelo assassinato sob tortura do ex-deputado Rubens Paiva e a posterior ocultação de seu corpo.
Ocultação dos corpos, um dos crimes mais cruéis da ditadura militar, vem sendo divulgado pela Comissão da Memória e da Verdade, refutando a versão dada pelo Estado brasileiro sobre os delitos contra a humanidade cometidos pelas Forças Armadas. Centenas de famílias foram privadas do direito ao luto e ao sepultamento de seus mortos, assegurado pelas mais primitivas civilizações: honrar e enterrar.
A leitura de “Luto e Melancolia”, de Sigmund Freud, ajuda as famílias, os amigos e a sociedade a entenderem o significado cruel do desaparecimento forçado, amplamente utilizado pela ditadura militar no Brasil. Conexão que surge da análise dos efeitos psicológicos e sociais provocados pela ausência de um fechamento simbólico ou ritualístico nos processos de elaboração do luto, que é uma resposta saudável diante da perda. Perda vai gradualmente sendo substituida, direcionada, para novos objetos ou relações.
Reviver memórias e sentimentos relacionados à morte é sempre doloroso. Contudo, a certeza da morte, objetificada no corpo, permite que familiares e amigos enfrentem e vivam o luto, cujo processo estabelece uma ponte entre polos essenciais da existência humana: a vida e a morte. O luto é uma reação à perda e, na presença do corpo, o enlutado sabe exatamente o que perdeu. Mesmo se for um processo lento e doloroso, que traga consigo uma tristeza profunda, o luto gera perspectivas de futuro e novas possibilidades.
A situação de desaparecimento, no entanto, traz consigo reações confusas. Será uma perda definitiva? Ou será uma ausência temporária? O desaparecimento forçado impede a materialização da perda, objeto dos rituais funerários e da convicção da morte que se constituem em elementos estruturantes para o processo de luto. A falta de resposta gera a espera, que se converte em esperança e em negação da perda para a morte. A perda se converte em um vazio, não raro gestando sentimentos de culpa e de impotência diante da violência do Estado.
Durante a ditadura militar, milhares de pessoas foram presas, torturadas e assassinadas. E, parte delas teve seus corpos simplesmente sumidos. Essa violência foi pensada como método para ocultar informações sobre os desaparecidos políticos. Tal situação levou as famílias e a sociedade ao plano das ambiguidades, gerando níveis variados de melancolia, difíceis de serem superados.
Em certo sentido, a prática perversa do desaparecimento, além de uma violência direta, foi um dispositivo de controle para desestabilizar famílias e desmotivar a resistência. O desaparecimento abre um vazio para a constituição do que Freud chamou de Melancolia: uma resposta patológica à perda que, no contexto do desaparecimento político, pode ser traduzido como uma impossibilidade de aceitar a ausência. Socialmente, o desaparecimento é uma arma contra a revolta, gerando medo, silêncio e impunidade dos crimes cometidos. Só existe uma saída: a recuperação da memória histórica e a busca pela verdade e pela justiça, que transformam o luto e a dor da perda em resistência e reconstrução.
Nestes 50º Natal e Ano Novo sem Fernando, a sua memória foi trazida pela Faculdade de Direito e pelo Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal Fluminense (UFF). Por iniciativa do professor Manoel Martins e da artista plástica e ex-presidente do DCE Alexandra Simplício, anunciaram a proposta encaminhada ao Conselho Universitário de conceder a Fernando Santa Cruz, ex-aluno da instituição, o título de Bacharel em Direito (in memoriam). Com certeza, no próximo ano letivo, em 2025, Fernando Santa Cruz receberá seu diploma pela Universidade Federal Fluminense.
Durante a solenidade na Faculdade de Direito da UFF, muitos discursos emocionantes foram proferidos. Dentre eles, o de Orlando Guilhon, militante político e companheiro de Fernando Santa Cruz, que citou os depoimentos de Jair Ferreira de Sá e o de Doralina Rodrigues Carvalho,publicados no livro Onde está meu filho? de Cristina Tavares, Chico Assis, Gilvandro Filho, Glória Brandão, Jodeval Duarte e Nagib Jorge Neto. Jair e Doralina, dirigentes da Ação Popular Marxista Leninista, recordaram que um dia após a prisão de Fernando, eles tinham um encontro marcado com ele. Mas nem ele nem os agentes da repressão compareceram. Segundo Doralina, Fernando deu sua vida por ela, pois poderia tê-la entregue à repressão, mas não o fez. Jair expressou sentimentos de perda, dor e revolta, afirmando que Fernando não se encaixava nos “critérios macabros” da ditadura para definir quem deveria morrer.
O luto por Fernando e por tantos outros desaparecidos políticos – na verdade, barbaramente assassinados – ainda está incompleto. Há ainda um longo caminho para encerrar esse luto de meio século. Talvez essa jornada nunca tenha fim. Contudo, ao encerrar este texto, invoco os versos do poeta Marcelo Mário de Melo, companheiro dessa causa, para reafirmar nosso compromisso com a verdade histórica:
Purgar os erros
Lembrar os mortos
Fecundar os sonhos
Festejar as vitórias
Se não fizermos isto
Pela nossa causa
Quem o fará?
publicação original:
https://terapiapolitica.com.br/fernando-santa-cruz-ainda-estou-aqui/

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