Os mitos do ‘milagre’ econômico de Milei
13 de janeiro de 2025
imagem: Mihai Cauli
texto: Diogo Machado
A presidência de Milei não constitui nenhum milagre econômico. Pelo contrário, tem o potencial de agravar problemas estruturais e causar enorme sofrimento social. Devemos suspeitar de todos aqueles que, como a Iniciativa Liberal, saúdam esse programa político de empobrecimento.
Em dezembro, completou-se um ano da presidência do autoproclamado ‘anarcocapitalista’ Javier Milei na Argentina. Milei conquistou a atenção internacional durante a campanha de 2023 devido à radicalidade das suas afirmações ultraliberais – por exemplo, chamando o Estado de ‘criminoso’ ou prometendo acabar com a maioria dos ministérios – com seu estilo provocativo e até francamente bizarro (recordemo-nos da sua imagem com cabelo desgrenhado e motosserra na mão).
O presidente argentino, inicialmente apelidado de ‘louco’, ‘instável’ e ‘radical’, é agora efusivamente elogiado na imprensa internacional. A revista Economist, conhecida por apoiar governos neoliberais, mesmo que ditadores, reservou-lhe sua capa (tal como a Time) e desfez-se em elogios às politicas do ‘revolucionário do mercado livre’, afirmando sem pudor que:
“fortalecido pela clareza das suas convicções e guiado pela teoria do mercado livre, Milei tem uma melhor chance de sucesso que os seus antecessores.”
Por aqui, o público afirma categoricamente que Milei “pôs meio mundo a seus pés”. A Iniciativa Liberal, aliás, apressou-se a declarar afinidades com a ideologia de Milei e várias figuras do partido têm feito uma defesa obstinada de suas políticas nas redes sociais.
Milei alia o ultraliberalismo ao ultraconservadorismo (por exemplo, na área dos direitos reprodutivos), viralizando tiradas contra a ‘ideologia woke’ e o ‘marxismo cultural’ (seja lá o que isso for). Com tudo isso, tornou-se um dos ícones mundiais da extrema direita. No entanto, o suposto sucesso do que ele próprio chama como “o maior programa de austeridade da história [da Argentina]” e o seu desprezo infinito pelo Estado tornaram-no também uma das figuras da proa do neoliberalismo.
Milei atua como veículo de legitimação dessa ideologia na sua forma mais radical e violenta – não tarda veremos uma mobilização para justificar a aplicação do programa de ‘terapia de choque’ em outras geografias. Por isso, devemos avaliar criticamente a presidência Milei para nos colocarmos à altura desse confronto ideológico.
O principal argumento dos fãs de Milei é, sem dúvida, a resolução do persistente problema da inflação, cuja taxa mensal desceu dos 26% em dezembro de 2023 para 2.7% em outubro de 2024, supostamente por ter parado de ‘imprimir dinheiro’ para financiar o Estado. Também celebram o fato de Milei ter cortado cerca de 30% da despesa pública no espaço de um ano e de ter retomado o saldo primário positivo, algo que não é visto na Argentina há mais de uma década. Apontam ainda para sinais de uma tímida recuperação econômica: o PIB contrairá cerca de 4% em 2024, mas o terceiro trimestre registrou um crescimento positivo em comparação com o trimestre anterior (caiu em comparação com o período homólogo, todavia) e 2025 terá uma taxa de crescimento entre 5% e 6%.
Dito desta forma, e sobretudo comparando com o passado econômico turbulento do país, os resultados de Milei são apresentados quase que como um milagre, possível apenas devido ao cumprimento escrupuloso dos ensinamentos da teoria econômica liberal. As consequências sociais das suas políticas, como o aumento de 11% da população vivendo abaixo da linha de pobreza (de 42% para 53%), assim como a enorme queda nos salários reais e aumento do desemprego, são apenas notas de rodapé ou males necessários na história de ‘estabilização’ da economia argentina por via de reformas neoliberais. É fundamental portanto, dialogar com tais argumentos.
Primeiro, Milei é mesmo um líder com competências e políticas extraordinárias capazes de promover um milagre econômico na Argentina? A resposta é um redondo não. A queda na inflação é simplesmente resultado de políticas fiscais e monetárias restritivas. Ou seja, quando se corta brutalmente a despesa pública, cancelando obras públicas, subsídios, apoios sociais, aumentos de salários e de pensões, ao mesmo tempo em que se interrompe a emissão monetária, coloca-se um freio na demanda agregada, o que desacelera o aumento dos preços. Nada de mágico ou especialmente engenhoso aqui. O ajuste é feito às custas dos trabalhadores e dos mais pobres, os mais afetados pela queda brutal dos rendimentos reais e pelo desemprego. Provocando recessão na economia, retira-se a pressão pela subida dos preços; basta imaginar que se as pessoas não conseguirem comprar alimentos, os preços desses não sobem. A queda da inflação de Milei, por tanto, não é fruto de nenhuma genialidade econômica, ao contrário, é alcançada por meio de enormes custos sociais.
A alegada recuperação econômica de Milei é também uma fraude. Além da política fiscal restritiva, o presidente argentino fez essencialmente duas coisas: desvalorizou brutalmente o peso em relação ao dólar de uma só vez e reduziu a taxa de juros de referência do banco central. A tímida recuperação econômica argentina no último semestre de 2024 está fundamentada no retorno a altos superávits comerciais e na expansão do crédito. O primeiro não resulta de um dinamismo especial das exportações, mas sim da queda acentuada das importações devido à desvalorização da moeda, que torna os preços dos produtos importados artificialmente mais caros, reduzindo, ao mesmo tempo, o poder de compra dos argentinos. Da mesma forma, o segundo resulta da queda das taxas de juros, o que estimula a concessão de crédito simplesmente porque ele se torna mais barato (aqui também há algum efeito da estabilização macroeconômica trazida pelo controle da inflação).
Voilà: assim Milei conseguiu fabricar a ilusão de uma recuperação econômica com dois truques. Não houve nenhuma transformação significativa ou estrutural na economia argentina, que continua confrontando-se com os mesmos problemas que a tornam extremamente vulnerável e dependente.
O problema da economia argentina não é o ‘Estado grande e gastador’ – é muito mais complexo do que isso. Desde o final da década de 70, o país sofreu um processo de desindustrialização precoce, além do forte endividamento externo em virtude da desregulação financeira e integração nos mercados globais. A Argentina tem, por um lado, uma estrutura produtiva deficitária muito baseada no setor primário, dependendo assim da importação de tecnologias e produtos manufaturados. Configura-se, assim, uma economia dependente e muito vulnerável à procura externa de commodities e às oscilações dos termos de troca. O acúmulo de déficits na balança de pagamentos trouxe um endividamento externo galopante e uma crônica falta de reservas em moeda estrangeira, que foram sendo compensadas com a contração de dívida em moeda estrangeira, formando assim um ciclo vicioso. Isso criou pressão para a desvalorização do peso, com consequências inflacionárias que se manifestaram de forma extrema nas sucessivas crises econômicas e sociais.
A política de Milei não resolverá nenhum desses problemas. Obcecado com a redução do tamanho do Estado, ele se abstém de adotar medidas de política industrial que poderiam transformar a estrutura produtiva de baixo valor agregado e baixa sofisticação tecnológica da economia argentina. A indústria foi o setor cuja participação no PIB mais caiu durante o primeiro ano da presidência de Milei (1 p.p.). A recuperação está baseada nos setores agrícolas e energéticos, reforçando-se a primarização da economia. Mesmo a desvalorização cambial nominal posta em marcha por Milei, que podia ter aumentado a competitividade dos produtos industriais, foi ineficaz, porque a inflação causou o declínio da taxa de juro real para níveis próximos do início da sua presidência.
Tendo abdicado da emissão monetária para financiar o Estado e agora, sem inflação para baixar o valor real da dívida, Milei continua a endividar o Estado argentino mesmo com superávits. O serviço da dívida continua a ter um peso enorme, e o país agora dispõe de menos instrumentos para controlá-lo. A escassez de divisas estrangeiras permanece e Milei já namora um novo empréstimo do FMI. Já prometeu também passar a uma taxa de câmbio flutuante e remover controles de capitais, o que poderá tornar a economia argentina muito mais instável e vulnerável a choques externos. O radicalismo pró-mercado de Milei está privando o Estado argentino de instrumentos essenciais de intervenção na economia, o que aprofundará a dependência e a vulnerabilidade externas do país.
Sem surpresas, a terapia de choque neoliberal trouxe, além de endividamento, dependência e estagnação econômica, enormes custos sociais. O declínio real das pensões e dos salários é gigantesco em quase todas as atividades profissionais, registando-se igualmente um aumento galopante da pobreza e da privação material. Isso não é um ‘mal necessário’ nem um ‘dano colateral infeliz’. Como bem sabemos em Portugal, o objetivo das políticas de austeridade é fazer o ajuste estrutural da economia pela via do empobrecimento e às custas dos trabalhadores. Sabemos também que não tem que ser assim e que há outras alternativas. Não podemos aceitar que esta lógica se naturalize e que os pobres paguem pelas crises.
A presidência de Milei não constitui nenhum milagre econômico nem nenhuma salvação da economia argentina. Pelo contrário, tem o potencial de agravar problemas estruturais e causar enorme sofrimento social. Devemos suspeitar de todos aqueles que, como a Iniciativa Liberal, saúdam esse programa político de empobrecimento, dependência e desigualdades. (Publicado por Esquerda)
publicação original:
https://terapiapolitica.com.br/os-mitos-do-milagre-economico-de-milei/
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