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O neoliberalismo e sua vaga promessa de liberdade

20 de dezembro de 2024

Um trabalhador da cidade de Londres caminha pelo Leadenhall Market em 14 de setembro de 2020, em Londres, Inglaterra. (Dan Kitwood / Getty Images)

imagem: Dan Kitwood / Getty Images

texto: Helmer Stoel

tradução: Pedro Silva

 

O neoliberalismo frequentemente se apresenta como uma vitória para a autonomia individual. Mas isso não é verdade. Em entrevista à Jacobin, Grace Blakeley explica o quão vazia é essa afirmação — e por que a esquerda precisa oferecer uma visão melhor da liberdade.

Apesar dos muitos horrores do mundo atual, ainda há pessoas nos dizendo que capitalismo significa a “liberdade” do mercado. Em seu novo livro , Vulture Capitalism: Corporate Crimes, Backdoor Bailouts and the Death of Freedom [Capitalismo abutre: crimes corporativos, resgates financeiros ocultos e a morte da liberdade], Grace Blakeley, jornalista e redatora da equipe do Tribune, confronta essa mitologia neoliberal. Ela mostra o quanto o capitalismo deve ao planejamento e à intervenção estatal — e combina isso com estudos de caso envolventes de crimes corporativos, poder imperialista e resgates financeiros. Esses não são “excessos” do capitalismo, ela argumenta, mas sua própria essência.

Em uma entrevista, ela falou com Helmer Stoel, da Jacobin, sobre seu novo livro, política e os desafios para a esquerda.

O que te atraiu para a política em primeiro lugar?

 

Fui criada em um ambiente bastante político. Meu avô era comunista e delegado sindical no Sindicato dos Trabalhadores do Transporte e em Geral. Ele veio de uma família de classe trabalhadora e se educou. Aos quatorze anos, ele fugiu de casa, entrou para a Marinha e leu O Manifesto Comunista. Ele e minha avó tiveram três filhos, minha mãe, Karen, e depois Karl e Keir, que receberam os nomes de Karl Marx e do fundador do Partido Trabalhista, Keir Hardie. Meus pais estavam muito envolvidos em coisas como a campanha de solidariedade à Nicarágua na década de 1980. Por volta dos treze anos, eu sabia que queria fazer política, mas de uma forma menos definida mas progressista de maneira geral.

Fui para a universidade para PPE [Filosofia, Política e Economia], o que provavelmente me tornou mais liberal. Mas durante meu curso de Estudos Africanos, me tornei um pouco mais radicalizada. Estudar PPE é como estudar o capitalismo global da perspectiva daqueles que estão no topo, e Estudos Africanos é como estudá-lo da perspectiva das pessoas na base. Depois disso, eu queria trabalhar nas Nações Unidas ou em uma ONG, ou fazer um doutorado. Mas pensei que se eu quisesse consertar qualquer um desses problemas, deveria começar com a City de Londres, porque ela está lavando todo o dinheiro que é sugado do Sul Global, muito mais do que vai para esses países como auxílio ao desenvolvimento. Foi também quando Jeremy Corbyn estava concorrendo à liderança trabalhista.

Fiquei sabendo do que Jeremy estava fazendo por meio do trabalho que eu desenvolvia com a Tax Justice Network, que combatia a facilitação da sonegação e evasão fiscal por instituições financeiras localizadas na City, deixando cicatrizes no Sul Global. Jeremy falou sobre desenvolvimento internacional e exploração de países pobres. Pensei: esse cara parece muito bom, talvez eu devesse começar a ajudá-lo. Isso me atraiu para o Partido Trabalhista. Como para muitos amigos, esse foi um momento decisivo para mim: as coisas poderiam ser diferentes se isso não tivesse acontecido.

Seu novo livro aborda um mal-entendido sobre como o capitalismo contemporâneo funciona: você aponta para o legado da Guerra Fria de igualar capitalismo com o livre mercado e socialismo com planejamento. Você argumenta que precisamos parar de falar sobre “capitalismo de livre mercado” e reconhecer que é um sistema híbrido que também envolve planejamento.

Os neoliberais aceitariam a ideia de que planejaram a construção de mercados. Mas eles também diriam que o que aconteceu dentro desses mercados não foi planejado. Eles diriam: definiram as regras do jogo, agora vocês vão e joguem. Mas em Vulture Capitalism, eu vou mais longe para dizer que, na verdade, o neoliberalismo envolve planejamento constante, extensivo e penetrante uma vez que o jogo começou. É basicamente planejar para proteger os interesses do capital: governos intervindo para resgatar instituições financeiras, grandes corporações, etc., e promulgando legislação que os beneficia, bem-estar corporativo, mas também — além da intervenção governamental — planejamento corporativo.

A ideia de um mercado livre é que nenhuma instituição corporativa deve planejar porque você só pode fazer o que o mercado está lhe dizendo para fazer: você desenvolve um plano de negócios e o contexto do mercado muda, você tem que mudar seu plano de negócios de acordo, então, como uma empresa individual, você não tem poder real por causa de toda a pressão competitiva exercida.

Mas dentro de um mercado monopolista, ou seja, onde há uma empresa isolada pressão competitiva até certo ponto, ela pode planejar de forma semelhante a um governo. Assim como um governo pode dizer: estamos investindo neste tipo de tecnologia e isso determina o futuro da nossa sociedade, as corporações podem dizer: vamos investir todo o nosso tempo e energia na construção de IA [inteligência artificial]. Ninguém mais decide se esse é um bom uso de recursos. As corporações são tão poderosas que têm capacidade de moldar o desenvolvimento da sociedade humana.

Só para entender seu apelo, em termos ideológicos, o neoliberalismo também era uma narrativa sobre liberdade e, especialmente, sobre como qualquer planejamento ameaçava a liberdade individual.

Na introdução, falo sobre como o projeto neoliberal foi baseado no que [Friedrich] Hayek chamou de “dupla verdade”. Ele basicamente diz que precisaremos apresentar essas ideias como um retorno aos mercados livres: então, é sobre entregar liberdade individual. É sobre sua liberdade de escolha como consumidor. É sobre sua liberdade de basicamente fazer o que quiser. Mas por baixo disso, haverá esse projeto mais amplo e profundo, que é até certo ponto realmente sobre planejamento. É sobre como desenvolvemos sistemas que encorajam tipos específicos de comportamento e previnem outros.

No Reino Unido, a ideia de liberdade para fazer o que quiser e ficar muito rico foi historicamente associada à dissolução dos sindicatos, e no lugar desse tipo de poder coletivo, temos a venda de moradias sociais, a privatização de empresas estatais e a venda desses ativos para indivíduos.

Junto com um grande boom financeiro, isso significou que esses ativos aumentaram substancialmente em valor, então as pessoas sentem que ficaram mais ricas por causa de seus investimentos como minicapitalistas. Esse “empreendedorismo” é a cenoura do neoliberalismo: a ideia de que se você competir da maneira que estamos dizendo, ficará rico, terá sucesso e um tipo de vida estável e segura, etc.

“A geração dos meus pais comprou suas casas por £ 30.000 na década de 1980 e elas agora valem milhões. Eles dão sentido a isso não em termos de tendências sociais, mas dizendo: ‘Sou um empreendedor realmente bem-sucedido’.”

O outro lado disso é a razão real pela qual essas mudanças foram implementadas. É isso que a “dupla verdade” significa. A história contada a todos é: queremos criar uma sociedade empreendedora. Então, vamos deixar você comprar sua casa, investir em mercados de ações, etc. Mas a intenção era quebrar o poder coletivo e encorajar as pessoas a pensarem em si mesmas apenas como indivíduos. Esta foi, novamente, uma forma intencional de planejamento. Era sobre quebrar o espírito coletivo dos anos 1960 e 1970, e substituí-lo por indivíduos isolados e atomizados que estavam apenas competindo uns contra os outros.

Então, você teve ataques ao movimento trabalhista e a criação de leis antissindicais, mas também essa privatização e financeirização: dar às pessoas suas próprias casas, permitindo que elas invistam em mercados de ações, acumulando dívidas em cima delas para comprar todas essas coisas. Esta é uma poderosa ferramenta disciplinadora para encorajar as pessoas a competir entre si e a pensar em si mesmas como indivíduos isolados.

A geração dos meus pais comprou suas casas por £ 30.000 na década de 1980 e elas agora valem milhões. Eles dão sentido a isso não em termos de tendências sociais, mas dizendo: “Sou um empreendedor realmente bem-sucedido. Sou inteligente. Sou bom em ler o mercado.” Isso realmente encoraja essa mudança em direção ao individualismo. Mas então aqueles que não possuem ativos são disciplinados pelo fato de que seus salários são menores, eles não têm poder de barganha, têm muitas dívidas. A ideologia do individualismo competitivo encoraja você a se culpar por essas coisas.

Você fornece vários estudos de caso, incluindo os escândalos de segurança da Boeing. Muitas dessas empresas ocupam uma posição monopolista. Ainda assim, elas têm que competir. Como a Boeing compete com a Airbus? E por que eles não fazem isso por meio de definição de preços?

Em vez de competir por preço — o que ambas as empresas percebem que não funciona a longo prazo — elas mantêm os preços estáveis, coordenam e conspiram. Elas competem por cortes de custos na forma de salários, por exemplo, explorando fornecedores. Elas usam seu poder de mercado em relação a empresas menores para exigir concessões. Depois, há também formas de corrupção política para extrair riqueza de diferentes partes da cadeia de suprimentos. A Boeing se envolveu em vários escândalos de corrupção e tem ligações estreitas com o governo, como no acordo com a Southwest, por exemplo.

O poder de gestores de ativos como a BlackRock também é enorme. Já em Stolen você introduz a ideia de um gestor de ativos do povo [PAM].

Gestão de ativos envolve basicamente investir o dinheiro de outras pessoas. Os grandes bancos de investimento têm braços de gestão de ativos que investem o próprio capital que é direcionado a isso. Eu disse que as sinergias que surgem desse modelo são bem significativas porque um banco de investimento pode emprestar dinheiro para uma start-up em crescimento, por exemplo, e então seu braço de gestão de ativos também pode ver isso como uma oportunidade de investimento realmente boa.

Minha proposta é que poderíamos criar um fundo nacional de investimento que investiria, por exemplo, em empresas de tecnologia sustentável ou projetos de infraestrutura — coisas nas quais queríamos investir. Então, o gestor de ativos do povo poderia ter uma participação acionária nessas empresas para que quaisquer retornos obtidos com os empréstimos do banco fossem para os proprietários finais, o público.

Basicamente, depende da distinção entre tomar emprestado onde você não obtém a propriedade do ativo, versus investir comprando uma ação ou uma cota ou assumir uma posição em uma empresa onde você obtém uma participação acionária. Se você tem essa participação, então você tem direito aos retornos futuros daquele projeto. Então, o argumento era que ter um banco de investimento nacional não é suficiente: você também precisa de uma instituição que seja capaz de assumir uma participação acionária nessas empresas.

Isso poderia ser financiado por um fundo de riqueza dos cidadãos, como o fundo soberano da Noruega, que tem participação acionária em muitos setores da economia global. A diferença, aqui, seria que um gestor de ativos do povo teria um conselho eleito democraticamente, representação para o movimento trabalhista, e haveria consultas públicas frequentes sobre o que as pessoas queriam ver investido.

Você demonstra como o planejamento corporativo influencia a vida cotidiana dos trabalhadores — e tem um capítulo sobre o fordismo. Você descreve Jeff Bezos como “o Ford da nossa era”. Muitos argumentaram que já entramos há muito tempo no pós-fordismo. Algo relacionado ao fordismo ainda existe em empresas como a Amazon?

Não acho que você possa dizer que o fordismo continuou. O modelo não é o mesmo que era na década de 1940. O argumento é, em vez disso, que o tipo de sociedade que temos reflete o equilíbrio do poder de classe. A razão pela qual o fordismo era fordismo é que havia uma classe de trabalhadores organizados que eram capazes de exigir muito mais de seus chefes dentro da corporação Ford, o que significava que certas demandas tinham que ser atendidas.

Ford também exigiu um certo contexto macroeconômico, basicamente caracterizado pela estabilidade. Então, o Estado estadunidense interveio para criar essas condições, silenciando os altos e baixos do ciclo de negócios e intervindo para fazer a mediação entre patrões e trabalhadores quando necessário. Então, toda a configuração do fordismo não é apenas um regime particular de acumulação que vem da legislação ou das instituições, como esses novos economistas ganhadores do Prêmio Nobel diriam. É sobre o equilíbrio do poder de classe.

“Não acho que você possa dizer que o fordismo continuou. O modelo não é o mesmo que era na década de 1940. O argumento é, em vez disso, que o tipo de sociedade que temos reflete o equilíbrio do poder de classe.”

Quando esse equilíbrio mudou durante as décadas de 1970 e 1980, como resultado de várias mudanças relacionadas tanto à estrutura do capitalismo quanto a decisões particulares tomadas por instituições e indivíduos, é que vemos a mudança de um processo de produção fordista para o que você poderia chamar de processo da Amazon. Nesse modelo, o trabalho foi decisivamente derrotado, então você pode contratar trabalhadores explorados da forma que queira, dizer a eles para fazerem o que você quiser, tratá-los como robôs e eles terão dificuldade para se organizar.

Este modelo também tem crises mais frequentes. No entanto, uma empresa como a Amazon é tão poderosa que não precisa necessariamente de certeza macroeconômica para poder gerar lucros. Ela basicamente envolve um mercado inteiro e é capaz de gerar certeza para isso; não precisa que o Estado intervenha para fazer a mediação entre trabalho e capital porque o trabalho não tem poder. Então, todas essas mudanças na natureza da regulamentação e da economia política têm relação com o equilíbrio do poder de classe em vez de ser uma mudança puramente intelectual ou ideológica.

A última parte do livro discute casos bem-sucedidos de planejamento democrático-socialista, como o governo de Salvador Allende no Chile. Propostas de planejamento socialista frequentemente enfrentam as mesmas objeções: o problema de escala e preço como um mecanismo de coordenação para o mercado. Muito disso remonta aos debates sobre planejamento socialista da década de 1920.

Eu realmente fico frustrado com a academização de alguns desses debates porque você não consegue dissociar essas questões do que está acontecendo na prática. Sou perfeitamente simpática às pessoas envolvidas no debate original sobre o cálculo socialista. Esse debate foi baseado em um momento histórico particular e também ao lado de movimentos políticos particulares que queriam respostas para essas questões.

Em alguns casos, esses debates sobre cibernética estavam sendo implementados na URSS, mas foram encerrados por planejadores centrais que não queriam mais sistemas auto-organizados. Tudo isso era bom, mas estava enraizado em um momento e movimento político específico que tinha o potencial de tornar essas ideias realidade. Hoje, se estamos abordando a questão do planejamento democrático colocando um monte de números em um modelo de computador ou tentando construir um modelo que nos permitirá alocar recursos de forma eficiente em uma sociedade centralmente planejada sem dinheiro, não estamos fazendo nosso trabalho, porque essa não é a pergunta que precisamos fazer.

“A ideologia do individualismo competitivo impede qualquer transformação socialista, independentemente de como você acha que isso possa acontecer, porque as pessoas estão muito convencidas de que estão sozinhas.”

Agora mesmo — e é por isso que começo com essas questões sobre poder e planejamento — precisamos perguntar como podemos dar às pessoas senso suficiente de seu próprio poder para que elas comecem a desafiar o sistema. Não cheguei a essa questão do planejamento por um interesse intelectual, como se o planejamento centralizado fosse uma maneira mais eficiente de alocar os recursos da sociedade. Cheguei a isso porque a economia que temos agora é baseada em uma forma generalizada e invisível de planejamento centralizado que é muito difícil de desafiar e que se baseia em uma ideologia que diz às pessoas que você vive em uma economia competitiva e tem que competir com as pessoas ao seu redor. É isso que faz o sistema funcionar. Mesmo que não seja verdade, isso é parte da ideologia.

É essa ideologia do individualismo competitivo que impede qualquer transformação socialista, independentemente de como você acha que isso pode acontecer, porque as pessoas estão tão convencidas de que vivem por conta própria. O coletivismo é a condição crucial para qualquer movimento socialista. Nessas sociedades individualistas competitivas, há uma quantidade imensa de poder organizado no topo, mas as pessoas enfrentam isso como um indivíduo isolado e pensam, sim, o capitalismo está quebrado. Os políticos trabalham com as empresas para me manter para baixo, mas estou por conta própria. Não há nada que eu possa fazer sobre isso. Esse é o grande problema que temos.

Então, como rompemos com essa ideologia? Bem, temos que mostrar que o capitalismo não é, na verdade, um sistema competitivo de livre mercado. As pessoas no topo estão cooperando umas com as outras o tempo todo, mas elas nos convencem de que temos que competir e que temos que operar neste sistema de livre mercado, porque essa é a coisa mais eficiente.

Você é bastante crítica à situação da esquerda. Você descreve a cartelização: o processo pelo qual partidos social-democratas se entrelaçam com o poder do Estado e o interesse do capital. Podemos ver o blairismo como um caso paradigmático?

Sim, os cientistas políticos que desenvolveram essa ideia de cartelização estavam estudando os Democratas e Trabalhistas dos EUA. Eles disseram que a quebra do vínculo entre os partidos trabalhistas e seus espaços de massa — tanto com o movimento sindical quanto com a filiação partidária — foi um passo decisivo em direção à criação de cartéis políticos que não precisam prestar atenção aos interesses dos membros ou das pessoas que eles supostamente representam. Em vez disso, podem desenvolver vínculos com o Estado e, então, acordos com outros partidos políticos para nitidamente alternar o poder político quando as eleições chegarem, sem nunca desafiar a base fundamental do sistema.

No verão, a Grã-Bretanha ficou chocada com os tumultos anti-imigração da extrema direita, iniciados após o terrível esfaqueamento em massa em Southport. Entre os comentaristas de esquerda, houve um debate acalorado sobre se os fatores econômicos ainda são relevantes aqui, já que a retórica racista e anti-imigrante desempenhou um papel tão importante. Você acha que há uma ligação?

 

Há uma ligação, mas é mediada por fatores psicológicos. O ponto de partida é que as pessoas se sentem alienadas e desempoderadas. Se você sente que não tem literalmente nenhum controle sobre sua própria vida ou qualquer coisa que esteja acontecendo ao seu redor, 80% das pessoas dirão que vão se desligar completamente da política, enquanto 20% reagirão com raiva. Alguns a canalizarão para algo produtivo, outros para algo reativo. Como essa raiva é canalizada será definida por como as pessoas pensam sobre si mesmas e seus relacionamentos com outras pessoas.

Em uma sociedade individualista, não há mecanismos para canalizar essa raiva para algo produtivo. No passado, se isso o deixasse com raiva, você faria algo a respeito: se filiaria a um sindicato ou partido político, iria a uma manifestação. Mas como hoje temos esse individualismo generalizado, você enfrenta essa impotência sozinho. É sobre isso que meu próximo livro será.

“A ideia de igualdade só surgiu realmente com o desenvolvimento do capitalismo. Qualquer sociedade é historicamente estruturada de acordo com uma hierarquia particular.”

Não é uma coisa puramente econômica: não é só que os padrões de vida das pessoas estão caindo. Elas se sentem impotentes para mudar qualquer coisa e confrontam essa impotência por conta própria, então isso gera uma forma de raiva individualizada, que é meio que um revanchismo nietzschiano.

Você só quer se vingar das pessoas que estão te ferrando, então elege alguém que diz que vai fazer essa vingança por você. Ou você sai para as ruas e se vinga por si mesmo. O que você está fazendo nessa situação? Está recuperando um senso de poder próprio. Como? Exercendo esse poder sobre pessoas ainda mais impotentes do que você. Você está replicando o sistema dentro do qual vive.

 

Você também foi bastante crítica de Corbyn. Existe alguma maneira de reviver uma esquerda pós-Corbyn significativa na Grã-Bretanha hoje?

 

Eu era muito parte disso. Mas há coisas que percebi desde então que importam muito para a crítica do movimento que eu teria agora. No livro, argumento que abordar as pessoas com uma oferta de proteção por um Estado capitalista é muito diferente de abordá-las com uma oferta de empoderamento.

Hoje, a divisão esquerda/direita na maioria das economias avançadas é a esquerda dizendo que o governo irá protegê-lo, e a direita dizendo que o mercado lhe dará liberdade. Nós jogamos nisso. Nós dissemos que o capitalismo falhou, mas não se preocupe, vote em um governo trabalhista porque eles irão protegê-lo de todos os piores excessos do mercado capitalista. Então eles chegam ao poder e não apenas falham amplamente em proteger as pessoas, mas na verdade acabam trabalhando em nome dos interesses das grandes empresas e se envolvendo em todos os tipos de formas de corrupção.

Então, o público olha para isso e acha que essas pessoas não são confiáveis; e então a direita lucra dizendo que o governo é corrupto, então vamos encolher o Estado e dar mais poder ao mercado. Daí você tem escândalos corporativos massivos como aviões Boeing caindo do céu e as pessoas dizem: bem, o capitalismo está quebrado, então qual é a outra opção?

O que estou dizendo é que essas duas coisas não estão separadas. Os fundamentos do poder político em uma sociedade capitalista também são econômicos e os fundamentos do poder econômico em uma sociedade capitalista também são políticos. Este não é um argumento novo. Mas tem implicações para os tipos de política que temos. Se a esquerda diz: nos dê poder e o governo fará coisas boas para você, as pessoas não acreditarão. Elas dirão: “Quão estúpidos vocês acham que somos? Tivemos tantos governos trabalhistas e minha vida não melhorou nem um pouco.”

“Se você quiser argumentar de forma convincente como as coisas mudarão quando um governo trabalhista estiver no poder, isso precisa estar enraizado na experiência das pessoas com um projeto político coletivo.”

Esse é o problema de tentar organizar um projeto político eleitoral que não tem uma base de massa. Se você quer argumentar convincentemente como as coisas vão mudar quando um governo trabalhista estiver no poder, isso tem que estar enraizado na experiência das pessoas com um projeto político coletivo. Tem que ser como: nós fizemos a construção de riqueza comunitária e todos se envolveram e votaram em como o governo local gastou seu dinheiro e nós construímos uma cooperativa e ela criou empregos, ou nós construímos uma organização sindical. Isso significa empoderamento coletivo. Nós não tínhamos essa base, no entanto. Mas todos os movimentos socialistas mais bem-sucedidos do mundo tinham.

 

Muitas vezes, a palavra “populismo” é usada para significar qualquer coisa diferente da ordem estabelecida. Devemos adotá-la?

Existem diferentes tipos de populismo. Existe um populismo didático, onde há um líder falando com um grupo de indivíduos diferentes, tantos pequenos pontos conectados ao líder, mas não uns aos outros. Isso não vai funcionar. Existe outro tipo de populismo que são comunidades, locais de trabalho e grupos de pessoas conectados uns aos outros nos lugares por meio de um movimento, que também estão conectados a um partido ou uma instituição ou um líder ou um grupo mais amplo. Essa é a base de um populismo potencialmente bem-sucedido. Mas ele é construído sobre a fundação da organização coletiva.

Então há um antipopulismo tecnocrático, ou seja, governo de especialistas, que é parte do acordo neoliberal que visava despolitizar a política. Agora vivemos em um mundo onde, porque isso se tornou tão dominante, qualquer coisa que não seja assim é descrita como “populismo”, mas, na verdade, isso é apenas a política como um todo.

Você está envolvido em vários veículos de mídia de esquerda, como Tribune e Novara Media. Que conselho você daria para aqueles envolvidos em veículos semelhantes?

 

Acho que você tem que encontrar as pessoas onde elas estão. A esquerda está infectada com o foco no indivíduo. Acho que muitos esquerdistas passam muito tempo focando em como acumular o máximo de ideias possível em suas próprias cabeças e, ao fazer isso, inconscientemente criam uma enorme separação entre eles e todos os outros, porque a vasta maioria das pessoas não terá acesso a grande parte dessas ideias.

Ter acesso a uma ampla gama de ideias é sempre bom para entender o mundo — mas, a menos que você se esforce muito para evitar isso, também tornará mais difícil para você se comunicar com todos os outros. Você dará conta de certas coisas que ninguém mais conhece. Quanto mais profundamente você se torna inserido em instituições acadêmicas e discursos, mais difícil é ter uma linguagem comum para o público médio. Seu mundo é tão distante do deles que é difícil construir pontes.

“Ter acesso a uma ampla gama de ideias é sempre bom para entender o mundo — mas, a menos que você se esforce muito para evitar isso, também tornará mais difícil sua comunicação com todos os outros.”

Debates intelectuais sobre marxismo e capitalismo — pelo menos como esses argumentos são expressos — dificilmente têm relevância para a vida da maioria das pessoas. Então, a melhor coisa é ir e falar com as pessoas com quem estamos tentando dialogar, ouvir a linguagem que elas estão usando, ouvir as histórias que elas estão contando e começar a pensar: Como podemos falar essa linguagem? Como podemos contar nossas histórias dessas mesmas maneiras? Temos que confrontar nossos próprios egos e focar muito mais em falar com pessoas para as quais nossas ideias devem ser relevantes do que convencer uns aos outros de que somos inteligentes.

Expressar suas ideias e seus valores na linguagem deles requer se inserir em comunidades específicas. O melhor exemplo é o Partido dos Trabalhadores Belgas. Veja como eles lidam com a retórica anti-imigrante nas comunidades em que estão. Eles têm uma rede de ativistas e organizadores que vão a essas comunidades, fazem churrascos onde pessoas que estiveram envolvidas na extrema direita aparecem para conversar.

Você nunca vai convencer alguns deles — tudo bem — mas outras pessoas estão nesse espaço estranho de “Estou com raiva, mas não sei por quê”. A extrema direita os atrai porque os faz se sentir poderosos. Precisamos pensar em como podemos falar a língua deles.

 

As pessoas frequentemente equiparam o marxismo à igualdade, enquanto, na verdade, o próprio Marx era bastante crítico desse ideal e mais interessado em liberdade. Como você vê isso?

 

A ideia de igualdade só surgiu realmente com o desenvolvimento do capitalismo. Qualquer sociedade historicamente é estruturada de acordo com uma hierarquia particular. Algumas pessoas terão mais poder e influência do que outras. Igualdade, em um sentido extremo, pode significar desmantelar qualquer forma de hierarquia. Essa não é uma compreensão realista da maneira como as sociedades humanas funcionam e a obsessão com a igualdade só realmente surge como uma preocupação para a humanidade quando a desigualdade se torna tão significativa. A desigualdade obviamente decorre da diferença na propriedade de recursos, como uma consequência negativa da monopolização da propriedade.

Mas há muitas outras consequências negativas, e outra grande é que isso prejudica a liberdade e a autonomia das pessoas. Estou pensando sobre o que torna uma vida boa, que é realmente o que todos nós estamos considerando quando pensamos sobre política e socialismo. Você precisa de uma quantidade mínima de recursos para sobreviver. Mas se estou pensando sobre o que vai tornar minha vida melhor, ter uma sensação de controle e autonomia é mais importante do que uma sensação perfeita de igualdade ou mesmo acumular muitos recursos.

Acredito que uma sociedade mais igualitária, na qual todos tivéssemos um senso de controle, propriedade e autonomia sobre os recursos sociais, seria melhor para os ricos também. Isso os tornaria menos narcisistas e psicologicamente obcecados por si mesmos. Uma vida boa também envolve comunidade e conexão, e isso é algo que realmente está faltando na sociedade hoje. Somos tão individualizados e isolados que nos concentramos neste pequeno pacote de coisas que possuímos em vez de pensar sobre os elos que nos unem em nossas comunidades, em nossos locais de trabalho. E sim, acho que isso empobrece nossas vidas.

 

publicação original:

https://jacobin.com.br/2024/12/o-neoliberalismo-e-sua-vaga-promessa-de-liberdade/

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