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Quebrando o teto de vidro para atacar outras mulheres

5 de dezembro de 2024

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imagem: Valeria Ferraro / SOPA Images / LightRocket via Getty Images

texto: Francesca De Benedetti

Tradução: Pedro Silva

 

Marine Le Pen e Giorgia Meloni representam um novo modelo de marketing político da extrema direita. Elas apresentam o neoliberalismo ocidental como um farol do empoderamento feminino — alegando defender os direitos das mulheres, mesmo quando atacam migrantes e pessoas de baixa renda.

“Eu sou Giorgia, eu sou uma mulher, eu sou uma mãe, eu sou italiana, eu sou uma cristã, e você não pode tirar isso de mim.” Na Itália, essas palavras são talvez o resumo mais famoso de Giorgia Meloni sobre suas crenças. Dita pela primeira vez em 2019, essa linha foi ouvida muitas vezes desde então, inclusive por meio de um remix disco e uma versão em espanhol pronunciada em comícios do partido de extrema direita Vox: “Yo soy una mujer…

Na cúpula demográfica de Budapeste em setembro passado, comandada pelo premiê húngaro Viktor Orbán, Meloni elaborou essa crença: “O que eu queria dizer com essas palavras é que vivemos em uma era em que tudo o que nos define está sob ataque. E por que isso é perigoso? É perigoso para nossa identidade — nossa identidade nacional, nossa identidade familiar, nossa identidade religiosa — é também o que nos torna conscientes de nossos direitos e capazes de defendê-los.”

O movimento se encaixa perfeitamente no que a filósofa e feminista italiana Giorgia Serughetti chama de “maternalismo identitário”: um estilo de liderança que “aproveita qualidades tipicamente associadas a mulheres e mães para oferecer ao eleitorado uma face reconfortante e protetora em tempos de grande incerteza”. A retórica da maternidade é parte de um manual de extrema direita agora comum que faz do “gênero” um inimigo — mas usa essa palavra em inglês para significar “ideologia feminista e LGBTQIAPN+”. Isso significa defender a família “tradicional” (heterossexual) como o núcleo da sociedade, condenar o aborto e os direitos LGBTQIAPN+ e ficar obcecado com as taxas de natalidade.

A estratégia de normalização da extrema direita não significa abandonar seus elementos autoritários, discriminatórios e anti-classe trabalhadora. Mas também vale a pena entender como o modelo reacionário tradicional é hibridizado com outros elementos de marketing político, sob o disfarce de liderança feminina. Hoje, enfrentamos uma operação mais caleidoscópica do que os dias em que Margaret Thatcher personificou o conservadorismo neoliberal.

Naquela época, a primeira-ministra Tory [conservadora] promulgou políticas antissociais apesar de ser mulher. No clima político de hoje, a extrema direita pode servir aos mesmos propósitos graças ao fato de ter líderes mulheres.

Ambiguidade estratégica

O fato de ser mulher não implica de forma alguma liderança feminista. Embora menos conhecida do que a citação “Eu sou uma mãe”, uma declaração nas memórias de Meloni, I Am Giorgia [Eu Sou Giorgia], coloca isso de forma clara: “Eu nunca fui feminista.” Meloni também parece estar em sintonia com o machismo: “O líder (literalmente: “il capo”) deve liderar e provar ser o mais forte!”

Como no caso de Alice Weidel, líder da Alternative für Deutschland (AfD) na Alemanha, ou Riikka Purra, que lidera o Partido Finlandês de extrema direita, essa “força” não tem nada a ver com empoderar a maioria das mulheres. Elas seguem uma agenda neoliberal que glorifica a competição e sacrifica o bem-estar. Como exemplo, a Fratelli d’Italia de Meloni se opôs à recente diretiva da União Europeia sobre o fortalecimento do princípio de salário igual para trabalho igual. A líder do Partido Finlandês, Purra, que também é ministra das finanças de seu país, é uma defensora ferrenha da austeridade. Weidel, como Meloni, se opõe ao salário mínimo — uma política muito mais propensa a beneficiar as mulheres — e cita Thatcher como seu modelo político.

Ainda assim, devemos notar o papel da ambiguidade estratégica no avanço dessa visão política. Fratelli d’Italia, enraizado no fascismo histórico, mantém uma postura viril e machista mesmo que sua líder use a retórica maternal; a AfD ainda mantém um discurso homofóbico mesmo que seja liderada por uma lésbica. E quando a líder de extrema direita francesa Marine Le Pen diz que quer defender os valores do Ocidente como mulher, sua batalha não é para estender direitos, mas para restringi-los.

Tal posição também é notavelmente moldada por sua insistência de que as acusações de chauvinismo são falsas. “Como todas as mulheres, mesmo que não necessariamente faça disso uma luta militante, você é sensível à condição das mulheres na França e até mesmo no mundo. Como política, eu mesma sou muito apegada a isso”, escreveu Le Pen na última vez em que concorreu à presidência. “O Ocidente deve se orgulhar de promover a igualdade e a emancipação das mulheres.”

Na retórica do Rassemblement National de Le Pen, o Ocidente se opõe ao islamismo. Quando Le Pen afirma direitos, ela não o faz para estendê-los, mas para torná-los exclusivos e excludentes. Não é coincidência que, enquanto prega a emancipação das mulheres francesas, Le Pen sonha com uma “preferência nacional” para excluir de empregos na administração estatal aqueles com dupla nacionalidade e limitar o acesso dos imigrantes aos serviços públicos.

As líderes femininas da extrema direita não apenas privam o feminismo de qualquer potencial revolucionário; elas também usam a feminilidade como apoio para a exclusão. Até mesmo os direitos das mulheres são remodelados como uma fronteira: eles não são concebidos como um bem universal, mas algo que nos distingue de outsiders perigosos (muçulmanos, imigrantes, gays) que minam esses mesmos direitos.

Vimos isso nos últimos dias, durante o lançamento de uma fundação dedicada a Giulia Cecchettin, uma jovem de 22 anos assassinada há um ano por seu namorado branco e italiano: o ministro da educação, Giuseppe Valditara, causou um escândalo ao declarar que “o patriarcado não existe mais” e afirmar uma ligação entre feminicídios e a presença de estrangeiros. Meloni defendeu seu colega, insistindo que a imigração ilegal é de fato um fator de violência de gênero. No último dia 25, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, em uma entrevista à revista Donna Moderna (Mulher Moderna), ela reforçou esse ponto, dizendo: “Vou ser chamada de racista por isso, mas há uma taxa maior de casos de violência sexual por imigrantes”.

Uma vez que as demandas sociais e econômicas foram eliminadas do discurso público, os líderes de extrema direita podem facilmente reinterpretar os direitos das mulheres como uma questão de identidade e segurança: o direito (ou melhor, a pressão) de dar à luz e o direito de se defender (do Outro demonizado). Nos cartazes da Alternative für Deutschland, bem como em sua contraparte austríaca, isso é simbolizado por mulheres grávidas dizendo “Não nos toquem” para migrantes.

Mães da Itália

A família é importante para o governo italiano. Nas palavras de Isabella Rauti, senadora do partido de Meloni: “Sem filhos, sem a alegria da continuidade, não há futuro, não há nada.” (Rauti é filha de Pino Rauti, um membro fundador do fascista Movimento Social Italiano que esteve envolvido em inúmeras investigações judiciais por terrorismo nos anos 1970.)

Meloni insiste que “tudo o que nos define está sob ataque” — e apresenta uma mensagem tradicionalista de defesa de uma identidade ameaçada. Até mesmo sua retórica sobre “ecologismo conservador” (contraposto ao “ambientalismo”, considerado uma ideologia da esquerda radical) cita a causa maior de “Deus, nação e família”.

Mas há também um quarto termo que precisa ser adicionado a esse trio: laissez-faire. Isso é afirmado tanto para os negócios (“aqueles que produzem não devem ser perturbados” pelo governo, insiste esse partido) quanto para a vida privada, embora da maneira mais contraditória: a própria Meloni é uma mãe solo, como certamente é seu direito, e ainda assim ela rotineiramente discorre sobre o que uma família de verdade é e o que não é.

Meloni também fez de sua própria família uma ferramenta de comunicação essencial, levando sua filha de seis anos em visitas oficiais importantes, como uma viagem recente à China. “Juntas em todos os lugares: eu te amo, meu ratinho”, ela postou nas redes sociais, junto com uma foto. Aqui, a maternidade tradicional e a demanda por privacidade são fundidas com o oposto.

Em sua obra de 1999, The New Spirit of Capitalism [O Novo Espírito do Capitalismo], Luc Boltanski e Ève Chiapello já haviam sugerido como o capitalismo seria capaz de engolir movimentos e ideias progressistas. Uma década depois, a filósofa Nancy Fraser explicou como o feminismo estava sendo distorcido pelo neoliberalismo, que sob a retórica de “quebrar o teto de vidro” deixou a maioria das mulheres socialmente destruídas. E agora, na década de 2020, líderes femininas de extrema direita estão contaminando ainda mais o cenário. Em Meloni, Le Pen e outros, a política dura da direita encontra um lar cada vez mais aconchegante para suas pátrias — o abraço caloroso de uma mãe.

publicação original:

https://jacobin.com.br/2024/12/quebrando-o-teto-de-vidro-para-atacar-outras-mulheres/

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