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Trump ameaça o comércio internacional, por Maria Luiza Falcão

3 de dezembro de 2024

imagem: Susan Walsh

texto: Maria Luiza Falcão

 

As políticas do “beggar-thy-neighbour" retornam ao âmbito das relações comerciais entre esses países, com sérios riscos de respingar no mundo.

“Beggar-thy-neighbour” significa em português “Empobrecer o vizinho”, termo que se refere a políticas econômicas e comerciais que impactam negativamente parceiros comerciais. Exemplos dessas políticas são imposições de tarifas, cotas, sanções, desvalorizações intencionais de moedas e barreiras impostas ao comércio de produtos específicos. Hoje essas políticas, que visam fortalecer a economia interna de determinado país, podem ter consequências indesejadas e até mesmo desastrosas para a economia global. São práticas associadas ao mercantilismo e ao neomercantilismo. Tornaram-se populares durante a grande depressão dos anos 1929 e 1930.  

 

O liberalismo clássico, que surgiu no final do século XVIII e início do século XIX, defende o livre mercado, a livre-concorrência, o câmbio-livre e a propriedade privada. O entendimento é de que os mercados são autorreguláveis e que intervenções do Estado são nocivas ao funcionamento das economias. Os liberais consideram que a abertura comercial fomenta o crescimento econômico dos países, aumenta a eficiência produtiva, estimula a inovação e atrai investimentos estrangeiros. A escola liberal surgiu em oposição ao mercantilismo e com forte influência do capitalismo. No mundo dos economistas clássicos, Adam Smith e David Ricardo, é como se as trocas se dessem entre ‘iguais’; as crises eram praticamente impossíveis e o comércio seria fonte de crescimento e riqueza beneficiando todas as nações. 

Logo ficou evidente que o mundo não funcionava assim. As trocas eram entre desiguais; entre colonizadores e colonizados; entre países imperialistas e antigas colônias; entre empresas pequenas e empresas oligopolizadas; entre países ricos e países pobres. O liberalismo econômico não triunfou, levando a disparidades de renda e riqueza, aumentando as desigualdades econômicas e sociais, levando países a trocar mercadorias com alto valor agregado por produtos primários. A falta de regulamentação gerou instabilidade e crises econômicas e financeiras, como demonstrado pela grande depressão de 1929 e outras recessões que se sucederam.

 

 A chamada “Crise de 1929”, que começou nos Estados Unidos e persistiu ao longo da década de 1930, teve muitas causas, mas vamos chamar atenção para o progresso tecnológico que ensejou um excesso de produção com o consequente aumento do desemprego, redução de salários e preços. A crise financeira chegou aos bancos e se multiplicou. A falência dos bancos aprofundou a crise. O comércio internacional foi afetado com uma redução severa das importações americanas, gerando desemprego nas principais economias do mundo e amplificando a crise em escala mundial. Para contorná-la, os países adotaram medidas protecionistas de combate ao desemprego.

Em 1930, o Congresso dos Estados Unidos aprovou o Smoot-Hawley Tariff Act que elevou as tarifas de importações como forma de proteger as rendas dos setores domésticos que foram negativamente afetadas.

Na Inglaterra, em novembro de 1929, Keynes defendeu que, para tirar a economia britânica da crise, numa economia sem pleno emprego, seria aconselhável a introdução de direitos aduaneiros sobre as importações para ajudar a reequilibrar a balança comercial e incentivar a produção e o emprego. Naquela época, as autoridades britânicas estavam empenhadas em defender a paridade em ouro da libra esterlina, a moeda internacional, a moeda hegemônica. Em janeiro de 1930, no âmbito do Economic Advisory Council, Keynes sugeriu a implementação de um sistema de proteção para reduzir as importações. Ainda em 1930, propôs uma tarifa uniforme de 10% sobre todas as importações e subsídios, com a mesma taxa, para todas as exportações. No seu famoso Tratado sobre a moeda,publicado no mesmo ano, retomou a ideia de tarifas ou outras restrições comerciais a fim de reequilibrar a balança comercial.

 

No resto do mundo não foi diferente. China, Rússia, e de forma especial o Japão, entraram, também, nesse embate. As políticas protecionistas dos anos 1930 foram caracterizadas pelo nacionalismo e pela substituição de importações. No Brasil, desencadeou-se um processo de industrialização por substituição de importações com tarifas de proteção às indústrias nascentes. O protecionismo tornou-se um dos pilares da escola desenvolvimentista, desde a presidência de Getúlio Vargas. Dentre as medidas impostas pelo Brasil figuram a Lei da Informática, a campanha “O Petróleo é Nosso” e o programa “Inovar Auto”. O protecionismo era distinguido por países e por setores específicos.

As políticas de “empobrecer o vizinho” perderam muito do seu apelo com o avanço da globalização. Destaque para a internacionalização de negócios e o aumento do fluxo de trocas comerciais no mundo. As inter-relações entre países e empresas, via cadeias produtivas de valor, foram impulsionadas de forma muito rápida nas décadas de 1980 e 1990, possibilitando que as empresas ampliassem o seu campo de atuação, não se restringindo apenas ao território de seu país. As redes de comunicação, cada vez mais rápidas, permitiram que a transmissão de informações e o compartilhamento de novas tecnologias pelo mundo se ampliassem de tal forma que se tornaram quase que instantâneas. Multiplicaram-se e agigantaram-se as multinacionais – que se aproveitam cada vez mais das vantagens locacionais em termos de salários baixos e matérias primas. Aumentou a circulação do capital financeiro e o campo de atuação das bolsas de valores. Porém, a concentração de renda e riqueza, as desigualdades sociais permaneceram, ou se aprofundaram em países na periferia do capitalismo.

A Organização Mundial do Comércio (OMC) foi criada em 1995, durante a Rodada Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (da sigla em inglês, GATT) para tratar das regras do comércio entre as nações e evitar guerras comerciais. A OMC é responsável por fiscalizar em que condições se dão as trocas entre países e as medidas comerciais adotadas. Tem como objetivo promover a liberalização do comércio internacional e negociar a redução ou eliminação de práticas protecionistas. O desafio é encontrar o ‘equilíbrio justo’ para que as medidas não se traduzam em uma escalada protecionista, causando distorções no mercado.

A crise de 2008, a crise do “subprime”, iniciada também nos Estados Unidos no setor imobiliário e considerada pela grande maioria dos economistas como a maior crise econômica e financeira desde a crise de 1929, intensificou, mais uma vez, o uso de medidas de restrição comercial, no entendimento de que essas medidas podiam ser consideradas como um instrumento de ajuste da política econômica, permitindo o aumento de empregos e um alívio temporário à concorrência das importações. Dessa forma, facilitaria às empresas domésticas fazerem os ajustes necessários de acordo com a própria OMC. O G20 criou um sistema de monitoramento via as instituições multilaterais para avaliar se medidas protecionistas estavam ou não crescendo.

É verdade que a crise econômica e financeira de 2008 se tornou mundial e levou, num primeiro momento, a um alerta sobre uma possível onda protecionista. No entanto, a onda foi bem mais leve do que se prenunciava. A  OMC  não considerou que o maior uso dessas medidas refletisse uma tendência geral na direção de um maior crescimento do protecionismo no mundo. “O risco existe, mas até agora não constatamos uma escalada protecionista como a observada durante a crise dos anos 1930, quando houve um forte aumento das barreiras ao comércio mundial”. Nesse período, porém, as tensões entre Estados Unidos e China, em torno da busca por hegemonia da liderança global, começam a se acirrar fazendo ressurgir as questões do protecionismo. As políticas do “beggar-thy-neighbour” retornam ao âmbito das relações comerciais entre esses países, com sérios riscos de respingar por todos os países do mundo.

A eleição de Donald Trump, em 2016, com sua estratégia do MAGA (Make America Great Again), faz proliferar, a partir de 2017, medidas de restrições comerciais em relação à China, considerada uma ameaça à ordem liberal. Logo nos primeiros dias no cargo, Trump removeu os Estados Unidos da Parceria Transpacífica, um acordo comercial entre 12 nações negociado no mandato de Barack Obama. Em seguida, Trump retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris , que estabelece uma série de medidas ambientais de combate ao aquecimento global. Trump é negacionista e desconfia das instituições multilaterais. Sua cabeça funciona como se vivesse num período anterior ao século passado. Seu retorno, em 2024, reacende no cenário internacional a onda protecionista raivosa, vingativa, que pode levar a guerras comerciais e ameaçar seriamente a geopolítica e o funcionamento da economia mundial. O alvo principal é a China, eleita “principal inimiga” pelo próximo presidente. Mas, ao brigar com a China que como os Estados Unidos são os principais motores da economia mundial, o mundo inteiro será afetado.

São bastante conhecidos os efeitos de guerras comerciais. Tomam a forma de conflitos econômicos que surgem quando os estados nacionais criam ou aumentam tarifas e/ou outras barreiras comerciais de forma unilateral. Os efeitos sobre a economia globalizada podem ser devastadores: desaceleração do comércio e redução do crescimento econômico; aumentos de preços; instabilidade econômica; desemprego; polarizações – necessidade de apoiar uma nação em detrimento de outra. As guerras comerciais podem ameaçar a ordem internacional de comércio, quebrando as regras estabelecidas pela OMC; levar a desvios de fluxos de trocas de mercadorias e serviços e interromper cadeias de suprimentos globais. 

O caso da carne brasileira, rejeitada pela rede Carrefour francesa, representa somente o início para o Brasil. Pode afetar o Acordo entre o Mercosul e a União Europeia. A agroindústria brasileira, que apoiou Trump, já sente o efeito de uma nova onda protecionista e não ficou nada satisfeita.

Trump vai repetir de forma mais intensa o início de seu governo em 2017 e já anuncia a imposição de tarifas altíssimas aos produtos da China, do México e Canadá. Há um acordo de livre comércio entre os Estados Unidos, México e Canadá (USMCA). A ameaça de rompimento do USMCA é uma espécie de chantagem para concessões em áreas sensíveis como drogas e imigração. É possível antever uma nova era de sanções e retaliações.

Mas a ameaça maior é contra a China com a imposição de tarifas exorbitantes, em um momento em que o país enfrenta uma crise imobiliária, uma crise de endividamento do governo e uma deflação, que prejudicam seu ritmo de crescimento. As empresas exportadoras procuram expandir seus mercados. Uma opção é o aumento do comércio com os países do BRICS+ do qual a China faz parte e o Brasil também. Importar mais da China pode comprometer os planos do governo brasileiro de reindustrialização.

Os países do BRICS são coagidos por `mister’ Trump, com anúncio de tarifa de 100% caso levem adiante suas ideias de buscar um sistema alternativo ao SWIFT ou proporem uma moeda alternativa ao dólar norte-americano para suas transações comerciais. A guerra não é apenas com a China no projeto MAGA do Trump. Os membros do BRICS, Rússia, Brasil, China e Índia figuram entre os países mais protecionistas do mundo. A OMC está enfraquecida e não tem poder de mitigar a guerra comercial que se aproxima. A tendência parece ser a reorganização do comércio ao longo de blocos de países com complementaridades de recursos e tecnologias. Mas, o que se tem como certo, é que as consequências da guerra comercial respingarão sobre o mundo inteiro.

 

publicação original:

https://jornalggn.com.br/economia/trump-ameaca-o-comercio-internacional-por-maria-luiza-falcao/

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