G20 e BRICS: duelo a vista?
24 de outubro de 2024
imagem: Francisco Goya
texto: Maria Luiza Falcão Silva
Para o Brasil, de forma especial, será viável manter a dualidade no mundo que está por vir? Ou haveremos que decidir de que lado estaremos?
O G20 se reunirá em novembro, no Rio de Janeiro, sob a presidência do Brasil, e o BRICS em Kazan, sob a presidência da Rússia, quase que concomitantemente. Duelo a vista?
O Brasil assumiu, em primeiro de dezembro de 2023, a presidência do Grupo dos 20 (G20). Criado em 1999, o G20 surgiu após as sucessivas crises internacionais, econômicas e financeiras, da segunda metade da década de 1990 e foi inicialmente concebido como uma organização de ministros de economia e finanças e presidentes de bancos centrais de 19 países mais União Europeia. Não havia presença de chefes de Estado. Esses países, os mais avançados em termos de industrialização, são: Alemanha, África do Sul, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Rússia e Turquia. Em 2023, juntou-se ao grupo a União Africana (que agrega 55 Estados membros). Para se ter uma dimensão, o bloco representa cerca de 85% do Produto Interno Bruto mundial, mais de 75% do comércio global e agrega 60% da população do planeta.
O argumento para constituição do Grupo dos 20 foi que à medida que as economias nacionais se globalizavam, o trabalho colaborativo entre os líderes políticos e financeiros se tornaria uma necessidade. O G20 engloba o G7, composto pelas maiores potencias econômicas, ditas democráticas, do propalado mundo desenvolvido – Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Itália e Japão. Em 1998, o G7 virou G8 com a entrada da Rússia. A justificativa era incorporar o País na economia global após o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Contudo, os russos foram expulsos do grupo em 2014, após a anexação da Crimeia. Hoje, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, não há qualquer possibilidade de diálogo. Mais, as economias do G7 já não são as sete maiores economias do mundo, uma vez que a China e a Índia, de acordo com dados recentes do Fundo Monetário Internacional (FMI), passaram a ocupar, respectivamente, os 2o e 5o lugares em termos de tamanho do Produto Interno Bruto (PIB) e hoje não fazem parte do restrito grupo. Se o fizessem, desbancariam a Itália e o Canadá. O PIB brasileiro foi estimado em US$ 2,13 trilhões em 2023, ultrapassando o do Canadá, com um PIB de US$ 2,12 trilhões. Em 2024, a expectativa é de que ultrapassará a Itália e chegará em oitavo lugar.
Na atualidade, a Cimeira sobre os Mercados Financeiros e a Economia Mundial, conhecida como a reunião do G20, é um encontro anual de ministros das finanças e de chefes de Estado das maiores economias do mundo, independentes de serem democráticas ou não. Os chefes de Estado reuniram-se, oficialmente, pela primeira vez, em novembro de 2008, quando a crise financeira, popularmente chamada de crise do subprime, originada nos Estados Unidos com o estouro da bolha das hipotecas, contaminou o resto do mundo e se transformou em um dos piores desastres econômicos globais depois da Crise de 1929.
A Cúpula do G20 vai se consolidando como um dos principais foros de “cooperação internacional. A cimeira ou cúpula anual é organizada pela nação que detém a presidência rotativa. Esse ano é o Brasil. O encontro dura dois dias, mas é precedido por inúmeros grupos de trabalho e encontros temáticos preparatórios que se desenrolam pelo ano inteiro e culminam na cimeira onde, após infindáveis debates e reuniões se emite uma Declaração Conjunta, uma espécie de consenso para uma ação coletiva em torno de questões centrais – os países membros se comprometem a agir, embora a declaração não seja ‘juridicamente vinculativa’.
A 2ª reunião de cúpula do G2O com participação de chefes de Estado e de governos ocorreu em 2009, em Londres. A Declaração Conjunta de 2009, em sintonia com o pós crise de 2008, estabeleceu como metas: restaurar a confiança, o crescimento e os empregos; reparar o sistema financeiro a fim de restaurar o crédito; fortalecer a regulação financeira para reconstruir a confiança; capitalizar e reformar as instituições financeiras internacionais para superar a crise e prevenir outras no futuro; promover o comércio e investimento globais; rejeitar o protecionismo para garantir prosperidade; e promover uma retomada do crescimento que fosse inclusiva, verde e sustentável. Talvez tenha sido a mais importante Cúpula tal era a urgência de ação conjunta para salvar o capitalismo. Daí em diante foram perdendo em importância e efetividade.
A Cúpula do ano passado, a 18a, foi realizada em Nova Délhi, na Índia, entre 9 e 10 de setembro, e foi marcada pelo embate em torno da guerra da Ucrânia entre os Estados Unidos e os países da OTAN de um lado, e a Rússia e aliados, inclusive a China, do outro. A China não compareceu, provavelmente por conta do aumento das tensões com o país anfitrião em disputas na fronteira. O presidente da Rússia também não foi para não correr o risco de ser preso. Tratar da guerra no âmbito da reunião foi um desafio, quase um pesadelo. Outro tema abordado na Cúpula da Índia cercado por impasses e controvérsias foi a questão climática e a proposta de limitação do uso de combustíveis fósseis como forma de se contrapor ao aquecimento global. Todos são conscientes da necessidade urgente de descarbonizar, mas difícil é a concretização das necessárias mudanças na direção de uma economia global mais limpa. Um dos subprodutos da guerra na Ucrânia, por exemplo, foi exatamente o retrocesso em relação ao uso de combustíveis fósseis.
A Declaração Conjunta da 18ª Cúpula quase não se materializou. As divisões no bloco das 20 maiores economias do mundo ficaram bastante explícitas e o encontro encerrou com uma certa sensação de fracasso. Os Estados Unidos tentaram todo o tempo compor com a Índia, estratégia para conter a aliança entre Pequim e Moscou que se fortaleceu com a guerra no leste europeu.
Como sempre cheia de intenções, declarações de princípios e metas sem concretude foi divulgada a Declaração Conjunta do encontro da Índia composta por nada menos do que 76 itens. O documento destaca a necessidade de ação conjunta em tópicos como: a necessidade de o mundo buscar formas mais sustentáveis de desenvolvimento econômico; garantia de pleno respeito pelos direitos humanos e pelas suas liberdades fundamentais, independentemente do seu estatuto migratório; profunda preocupação com o imenso sofrimento humano e o impacto adverso das guerras e conflitos em todo o mundo.
O Brasil, que pela primeira vez na história assume a presidência rotativa do bloco no seu atual formato tem vivido “efusivamente” essa novidade. Uma gastança considerável de recursos. O que esperar da 19a Cúpula que ocorrerá no mês de novembro no Rio de Janeiro? É preciso não repetir o que aconteceu em Délhi.
No mês seguinte à Cimeira de Nova Délhi, em 7 de outubro, o ataque homicida do Hamas a uma concorrida festa “rave”, em Israel, deixou centenas de mortos e o mundo perplexo. Estourou a guerra de massacre entre Israel e Palestina, mudando o foco das atenções do Leste Europeu para o Oriente Médio. Hoje a guerra se expandiu e abarcou os países vizinhos. É de Israel com os países vizinhos: Palestina, Líbano e Irã. O objetivo: controle de território, eliminação dos grupos ditos “terroristas” pelo governo de Israel: “Hamas, Hezbollah”. A região é uma das maiores produtoras de energia e petróleo do mundo de forma que há risco de transbordamento dos choques, via cadeias produtivas globais, afetando o fornecimento de óleo e matérias primas estratégicas e seus preços. Mais um agravante para a economia mundial que desde a pandemia pela corona vírus tem enfrentado múltiplos distúrbios – inflação, aumento da pobreza, guerra na Ucrânia, no Oriente Médio e eventos climáticos extremos que sinalizam que chegamos no limite para mudar nosso modelo de desenvolvimento na direção de outro cujo motor não sejam os combustíveis fósseis.
É nessa nova conjuntura global que se realizará, no Brasil, no próximo mês, no Rio de Janeiro, a Cúpula do Grupo dos 20, com um membro a mais, a União Africana. A Rússia não será representada pelo seu chefe maior, Putin, pelas mesmas razões pelas quais não compareceu no ano passado a Nova Délhi: pode ser preso. Estará com novos planos?
Há mais uma peça no jogo político e econômico. O encontro do G20 no Brasil coincidirá com as eleições presidenciais nos EUA, novembro de 2024. O que estará por vir?
O presidente Lula já havia antecipado na Índia, em setembro de 2023, e depois na recente Convenção das Partes das Nações Unidas sobre mudanças climáticas (COP 28) nos Emirados Árabes Unidos, que pretende daria centralidade a três tópicos que fazem parte do seu discurso nas tratativas internacionais desde que assumiu o 3º mandato em janeiro de 2023: i. Inclusão social e combate à fome, à pobreza e à desigualdade; ii. Promoção do desenvolvimento sustentável com a transição para uma matriz energética mais limpa; iii. Promoção de efetiva reforma das instituições de governança global para que se adequem à atual geopolítica, com ênfase especial no Conselho de Segurança da ONU e iv. Taxação dos mais ricos. Antecipou, também, sua disposição de convocar para a Cúpula do G20, Angola, Egito, Nigéria, Espanha, Portugal, Noruega, Emirados Árabes Unidos e Singapura. É de praxe nessas reuniões participarem outros países a convite do país hospedeiro.
Pelo visto, é difícil o trabalho cooperativo para enfrentar os problemas globais. Muito pelo contrário, o que se vislumbra são os mesmos dois consórcios de países que possuem cadeias de produção e oferta de matérias primas subordinadas de um lado à China aliada à Rússia, e do outro aos países do G7 sob a liderança dos Estados Unidos, controlando a economia mundial.
Em momentos de guerra, o comércio de commodities, petróleo e gás e seus derivados; alimentos; grãos; fertilizantes; metais e outras matérias-primas estratégicas, funciona como canal transmissor dos efeitos dos conflitos ora provocando escassez de mercadorias, ora se traduzindo em choques de preços, criando entraves ao crescimento dos países totalmente interdependentes no mundo globalizado.
Há que destacar também que precedendo a Cúpula do G 20 ocorre a partir de hoje, 23 de outubro de 2024, na Rússia, a Cúpula do BRICS +. Associaram-se ao grupo inicial – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – os Emirados Árabes Unidos, Egito, Etiópia, Arábia Saudita e Irã. A decisão foi tomada na cúpula de Joanesburgo, em agosto de 2023. Novos países devem se agregar ao coletivo na Cúpula em andamento sob a presidência da Rússia: Turquia, Indonésia, Argélia, Belarus, Cuba, Bolívia, Malásia, Uzbequistão, Cazaquistão, Tailândia, Vietnã, Nigéria e Uganda.
Com essas adições o grupo perde totalmente suas características iniciais: países com dimensões continentais, muito populosos, economicamente líderes em seus continentes buscando se posicionar em um mundo multipolar.
Agora o que buscam os BRICS? Com a perspectiva de atingir até 2028 algo em torno de 40% do PIB Global, e englobando os países mais populosos do mundo, não se pode considerar o bloco irrelevante na economia mundial. Sem dúvidas podemos afirmar que o grupo busca poder numa nova geopolítica em construção. Há países que atuam nos dois blocos. O Brasil é, sem dúvidas, um desses países. A Índia, África do Sul, Emirados Árabes Unidos, Indonésia e Turquia são também. O que está sendo gerado? A meu ver o Brasil se apequenou nesse novo BRICS + apesar de ser o único país das Américas. A Rússia, sob Putin, procura novos espaços de atuação após os novos e velhos inimigos se unirem contra ele depois da invasão da Ucrânia. A China já conquistou o espaço que lhe cabe. Só tende a crescer e de forma pragmática sem buscar brigas em países alheios.
Para o Brasil, de forma especial, será viável manter essa dualidade no mundo que está por vir? Ou haveremos que decidir em que lado vamos estar em um mundo nada amigável que se configura no futuro próximo?
publicação original:
https://jornalggn.com.br/brasil/g20-e-brics-duelo-a-vista-por-maria-luiza-falcao-silva/
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