Nota Técnica ABED – Reforma ou Ajuste Tributário?

ABED
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Duas propostas de transformação da estrutura tributária brasileira estão em discussão e servem a dois propósitos: primeiro, atender uma perspectiva de ajuste fiscal, assumido pelo ministro Haddad ao iniciar sua gestão, com o objetivo de transitar do chamado “teto de gastos” para um novo instrumento fiscal e funcionar como contrapartida na discussão pela redução dos juros; segundo, e em conformidade com o primeiro, não diminuir ou até mesmo aumentar as receitas do governo federal. Entretanto, tendo sido iniciados sob o governo Bolsonaro, os projetos que visam unificar impostos dos três níveis de governo, caminham a toque de caixa na Câmara e no Senado, sem abertura para discussões junto a Estados e Municípios. Cabe, então, um momento de reflexão sobre esse tratoraço que passa por cima do pacto federativo.

A lógica neoliberal dos anos 1980 e a globalização intensificada nos anos 1990 transformaram o papel do Estado quanto às políticas sociais: do bem estar à precarização, cada vez menos existe espaço para a solidariedade e a promoção da dignidade humana, porquanto tudo hoje é medido em unidades monetárias e se transforma em mercadoria.

O mantra do Consenso de Washington, personificado nas cartilhas do FMI (Fundo Monetário Internacional) distribuídas na América Latina, era claro: o Estado é inchado e ineficiente, é preciso descentralizar decisões e a execução de políticas. Isso era justificado pela ideia de que a concorrência entre localidades, sejam estados, províncias ou municípios, produziria maior eficiência na promoção de bens e serviços públicos. Ninguém menos que Ronald Reagan clamava por um New Federalism (Novo Federalismo)estadunidense.

Diante disso, enquanto descentralizavam políticas sociais, os governos centrais se concentravam em questões relevantes à reprodução do grande capital, seja através dos massivos investimentos em guerras e armamentos, seja na realização de privatizações e abertura de espaços para a atuação do mercado. Assim, enquanto o centro cria pobreza e miséria, as ações passíveis dos governos subnacionais, constrangidos pela lógica da globalização, adquirem caráter apenas paliativo.

O caso da federação brasileira é um tanto particular: enquanto fruto de uma força centrífuga, diferente da estadunidense – centrípeta –, dos 133 anos de república, apenas 52 anos, não contínuos, estiveram regidos pela ordem democrática. Mais especificamente, enquanto EUA e Europa experimentavam a fundação e o aprofundamento de um Estado de Bem Estar Social, o Brasil estava sob um regime militar reconhecidamente promotor de concentração de riquezas.

A atual Constituição Federal de 1988 tentou estabelecer também tais práticas. Entretanto, foi um projeto natimorto: primeiro, com a desnacionalização e a desmobilização de agências públicas promovidas desde governo Collor passando pelo aprofundamento da política neoliberal verificada nos dois governos tucanos da década 1990, e seguindo até aqui. O resultado, então, são forças contraditórias: o estabelecimento de políticas nacionais de bens e serviços, mas de responsabilidade de execução principalmente no nível municipal: o caso mais representativo é o do SUS (Sistema Único de Saúde).

Para além disso, dada a impossibilidade auto imposta do governo central de ofertar diretamente bens e serviços em massa, podemos diferenciar a execução da política e a decisão de implementação da política: enquanto há descentralização da primeira, há total concentração da segunda. Muitas vezes o governo federal impõe políticas a serem executadas, sem necessariamente proporcionar os meios financeiros para tal. Um exemplo recorrente é o estabelecimento de pisos salariais para categorias específicas: o conflito superficial entre municípios e enfermeiros, professores, e outras categorias, pelo orçamento local, desvia a atenção da falta de suporte financeiro pelo governo central aos estados e municípios.

Assim, a capacidade de aplicação de decisões é pulverizada pela descentralização, invertendo os papéis de quem deveria responder a quem: cidades e governos estaduais são capturados orçamentariamente por grandes empresas fonte de arrecadação – mais ainda, são reféns também das empresas das quais necessitam para a execução das suas ações governamentais – prestação de serviços ou produção de bens públicos.

Quando observamos as propostas de modificação da estrutura tributária atual, fica clara a sua superficialidade. Considerando as desigualdades regionais, as capacidades estatais distintas entre os governos subnacionais, tanto na arrecadação quanto na execução, há uma necessidade de cooperação entre os níveis de governo. Assim, por que não pensar em formas de enfrentamento das desigualdades regionais para além dos mecanismos simplórios de equalização fiscal como o (Fundo de Participação de Estados) e o FPM (Fundo de Participação dos Municípios)? Se não é possível uma transformação, ou mesmo a discussão sobre algo mais aprofundado, como serão alimentados tais fundos, uma vez que as receitas dos impostos que os financiam serão unificadas?

Além disso, está previsto o impacto sobre os índices que fundamentam limites com base na arrecadação dos diferentes níveis de governo? Se houver uma queda de arrecadação nos Estados e nos grandes Municípios, os índices de Despesa de Pessoal como percentual da Receita Corrente Líquida alcançarão níveis elevadíssimos. Da mesma forma, considerando a exigência de aplicação de um percentual mínimo de receita em Saúde e Educação, por exemplo, os valores nominais requiridos serão inevitavelmente jogados para baixo.

Assim, é possível afirmar que, partindo de uma conjuntura estrutural, mitigada por um histórico de contendas entre as unidades federativas, por mais autonomia diante do poder central, existe uma linha tênue que une os Estados brasileiros, qual seja, a capacidade tributária de arrecadação própria. O ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) se reveste de força aos governantes estaduais e lhes dota de autonomia quase que total em relação a União. Perder este tributo é diminuir o poder de barganha da classe política regional, correndo o risco de romper o fino laço que une a Federação. Desde que perderam seus bancos de desenvolvimento e suas estatais, os governos estaduais têm seus orçamentos estrangulados e baixíssima capacidade de investimentos – que papel terão em um cenário com ainda menos recursos?

Outro ponto a ser abordado é a questão do ISS (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza), tributo apenas cobrado pelas grandes cidades. De um total de 5.568 municípios, o Brasil tem 1.378 com menos de 20.000 habitantes, e não existe receita advinda do ISS em nenhum deles. Evidente que estes prefeitos irão defender uma reforma tributária que lhes dê mais recursos, mesmo com a perda de seu potencial de receita própria que, na prática, não existe. Para que se possa dimensionar o tamanho do conflito, apenas 17 cidades superam a barreira de um milhão de habitantes e acima de 500 mil habitantes são somente 49 municípios. Com certeza estas prefeituras não aceitarão passivamente uma reforma que lhe retire sua principal fonte de arrecadação própria.

Assim, uma proposta que apenas rearranja a receita da mesma base de arrecadação pode ser chamada de reforma? E o enfrentamento às plataformas digitais, em que seus bens e serviços intangíveis não são devidamente tributados? E quanto ao desequilíbrio tributário que pesa mais sobre o consumo e salários e menos sobre a renda, principalmente de dividendos e herança, será, mais uma vez, deixado de lado?

O que se espera de uma reforma tributária é o desenho de mecanismos de incentivos que respondam à uma estratégia de desenvolvimento. Essas questões anteriores deveriam fazer parte de uma proposta que deixe clara quais são as suas prioridades: tributar o capital e o trabalho em níveis diferentes produz níveis diferentes de salários e lucros; da mesma maneira, tributar de forma diferente o retorno sobre investimentos diretos na produção e os no mercado financeiro, implica em uma ou outra forma de alocação de recursos na estrutura produtiva. Essas discussões de mérito envolvem aprofundar o debate sobre a qualidade possível de uma reforma tributária nesse momento e com o nível de diferença e tensão entre os diferentes níveis de governo. É possível avançar nesse sentido, nesse momento, e sob o tacão da discussão de ajuste fiscal e pressão dos interesses rentistas?

Uma reforma verdadeira deverá atacar problemas de desequilíbrios verticais e horizontais, adaptando-se às atuais estruturas produtivas do país, desenhando mecanismos de incentivo ao desenvolvimento e ao aprimoramento dessas mesmas estruturas, instaurando um ambiente propício à novas formas de produção. Mais importante, deverá ser trabalhada de maneira democrática, em discussão junto à TODOS os níveis de governo, respeitando e fazendo jus ao pacto federativo consagrado na Constituição Federal.


Grupo de Análise dos Impactos da Crise

Associação Brasileira de Economistas pela Democracia – ABED

Equipe Técnica: Adhemar Mineiro (Coordenação), Antônio Rosevaldo Ferreira da Silva, Eron José Maranho, Jaderson Goulart Junior, José Moraes Neto e Juarez Varallo Pont.

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